Não há um ponto fixo a partir do qual se possa olhar para a obra de Farnese de Andrade. Seu trabalho, revisto agora em exposição na Galeria Almeida e Dale, não apenas contém uma potência plástica e simbólica única, como torna a história da arte brasileira mais complexa e interessante. Servindo de contraponto à narrativa oficial, que varre para debaixo do tapete qualquer expressão que escape da ideia de uma vocação abstrata no Brasil de meados do século XX, a arte de Farnese lida com interditos, fantasmas e arquétipos e traz à tona uma subjetividade incômoda. Como afirma Denise Mattar, responsável pela seleção dos quase 100 peças presentes na mostra, seus trabalhos “remexem nas entranhas do inconsciente, e por isso fascinam, encantam, assustam e incomodam”.
Densa, a exposição abarca uma ampla gama de pesquisas e momentos da produção do artista. Procura iluminar a importância de sua produção gráfica, pouco vista nas últimas décadas mas fundamental em sua trajetória. Durante boa parte de sua carreira, Farnese foi mais valorizado como ilustrador e gravurista e só a partir dos anos 1990, e sobretudo no século XXI, sua produção tridimensional adquiriu um destaque incontestável, ofuscando as outras formas de expressão. E, mesmo assim, tal valorização não foi suficiente para tirá-lo da margem. É curioso que, apesar de ser considerado um dos mais férteis artistas brasileiros e tenha sido revisitado em diversas exposições, estudos e publicações (com destaque para o alentado livro editado pela Cosac Naify em 2002), ele tenha sido mantido à sombra quando se trata de recontar a história da arte brasileira, ficando injustamente ausente de revisões históricas importantes, como a 24ª Bienal de São Paulo, por exemplo.
Tal esquecimento é muitas vezes explicado pelo fato de sua obra apresentar um certo descompasso em relação ao que se fazia hegemonicamente em seu período de atuação. Ele enfrentou o que Denise Mattar define como “ditadura da abstração” e uma resistência vigorosa a formas de expressão mais vinculadas a uma figuração próxima ao expressionismo e ao surrealismo. O que supostamente o aproxima de autores que o antecedem, como seu mestre Guignard (cujas indicações lhe garantiram emprego como ilustrador em diversas publicações quando mudou-se para o Rio, em 1946, para curar-se de uma tuberculose). No entanto, a força pulsional de sua obra, a capacidade de lidar com os tormentos e agonias íntimas (não só suas, mas também do homem moderno em geral) faz com que esteja mais próximo da arte contemporânea desenvolvida pelas gerações que o sucedem do que de seus contemporâneos.
Ao invés de considerar como blocos estanques as produções bidimensionais e tridimensionais do artista, a curadoria de Mattar procura esfacelar as fronteiras entre as linguagens, iluminando e colocando em diálogo alguns dos momentos mais marcantes dessa trajetória. “Uma coisa está contida dentro da outra. O Farnese dos 1990 está contido no Farnese dos 1960”, defende ela. Deixando de lado uma cronologia rígida, o visitante é apresentado a famílias de obras, a momentos marcantes em sua trajetória. Tem sempre diante de si um artista que parece estar permanentemente testando a si mesmo e a suas possibilidades plásticas, simbólicas, metafóricas.
Os trabalhos mais antigos da exposição constituem um núcleo disposto mais ao fundo da galeria. Ali estão os desenhos compulsivos e intrincados que dizia fazer para “chamar o sono” e que ganharam o nome de “Obsessivos”; um exemplar (bem comportado) da fase erótica que desenvolve no final dos anos 1960; e um dos três desenhos, chamados de “Censura” nos quais faz um comentário ácido e irônico sobre o período de repressão e dá uma resposta ao confisco e destruição pelos militares das obras que havia mandado para o 2ª Bienal da Bahia dois anos antes. Tais peças garantiram a Farnese o prêmio de Viagem no Salão de Arte Moderna de 1970, levando-o a Europa, onde fica pelos cinco anos seguintes.
Outros dois importantes conjuntos de trabalhos bidimensionais foram garimpados pela mostra. O primeiro deles é composto por 24 pinturas realizadas entre 1963 e 1980. Além de demonstrar sua versatilidade – “ele fazia tudo ao mesmo tempo”, diz Denise –, esse enorme painel evidencia alguns interesses do artista, como um fascínio pela sensualidade do corpo humano (não apenas de cunho homoerótico) e sua capacidade de reinventar formas de fazer arte. Nesses casos, por exemplo, ele desenvolve uma técnica particular, que ele chama de “tinta transformada” e que consiste na aplicação de aquarela misturada com um produto químico secreto no avesso da tela já pintada, transferindo para a obra manchas de cores e formas sedutoras, sobre as quais tinha controle apenas parcial. O segundo é um conjunto de monotipias feitas a partir de objetos que encontra à beira-mar ou em aterros no início dos anos 1960 e que em pouco tempo seriam incorporados em suas colagens tridimensionais.
Iniciadas em 1964 e produzidas de forma incessante até sua morte, em 1996, essas peças que reúnem madeiras carcomidas; carcaças de bonecas; santos de devoção popular; objetos garimpados em antiquários, no lixo ou nas ruas; conchas encontradas ao acaso ou imagens herdadas de um tio fotógrafo formam o corpo da exposição. Embalsamados em um ambiente de resina, encerrados em oratórios que passa a adotar no período em que reside em Barcelona, protegidos por redomas de vidro ou abrigados nos ocos das tradicionais gamelas de madeira usadas na cozinha popular de sua Minas Gerais natal, essas composições ao mesmo tempo angustiantes e sedutoras – de um preciosismo formal impressionante – parecem, como diz Mattar, “paralisar o tempo”.
Os temas são recorrentes. Há as anunciações, os mergulhos nas memórias afetivas relacionadas às figuras paterna e materna, uma longa série de trabalhos intitulados “Viemos do mar”, e outros campos de pesquisa aos quais retorna de forma obsessiva e compulsiva, como que num esforço de expurgo e organização interna. Há algo de lúgubre, nostálgico, neste retorno ao passado, que reabrem feridas, deixam sentimentos à mostra. Como bem definiu Charles Cosac no texto de abertura do catálogo, “ele se alimentou de saudade”.
E nos contagia nesse processo. Suas peças colocam à flor da pele emoções que deveriam ficar sepultadas, sobretudo num país que apostava na via unívoca, redentora de uma arte de ângulos retos e símbolos abstratos, deixando para trás seus pés de barro, suas madeiras roídas por cupins, uma sensualidade estranha e seus santos decapitados. Ao contar suas histórias, marcadas por memórias coletivas terríveis como o afogamento de seus dois irmãos alguns anos antes de seu nascimento e por um estado depressivo marcado por várias crises, Farnese ecoa em cada um de forma subjetiva. Porém, inevitavelmente mexe de forma intensa com sentimentos que vão muito além da razão.
Farnese de Andrade – Memórias Imaginadas
Curadoria de Denise Mattar
Até 15 de junho
Galeria Almeida e Dale:
Rua Caconde, 152 – Jardim Paulista, São Paulo – SP