Vlado Herzog tinha 38 anos quando foi morto, sob tortura, nas instalações do Doi-Codi, no ano de 1975, em São Paulo. Na época era editor do programa Hora da Notícia, da TV Cultura, e havia ido voluntariamente prestar depoimento. A partir daí montou-se uma farsa, na tentativa de encobrir o assassinato transformando-o em suicídio, e teve início uma luta acirrada para que a verdade viesse a tona, transformando o jornalista numa espécie de símbolo contra a opressão e em defesa da democracia, cujo último capítulo foi a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2018. É a ele que o Itaú Cultural dedica a 46ª edição do projeto Ocupação, que vem ao longo de anos revisitando a obra e biografia de grandes figuras da cultura brasileira. Acertadamente, a exposição vai além do drama político do biografado. O ponto de partida não é o final dramático, mas um entremeado de referências a sua vida pública e privada, um percurso que de certa forma explica porque foi tratado de forma brutal como inimigo do Regime. Resgata a história de uma figura multifacetada, profundamente interessada pelos rumos do país num momento particularmente violento de sua história e que via na arte, sobretudo no cinema – campo de seu maior interesse – um caminho de ação e reflexão.
Logo no início, os visitantes se deparam com uma seleção cuidadosa das fotografias que ele tirava de forma obsessiva e rigorosa. Nos acervos da família, foram encontradas mais de 70 caixas de slides, cuidadosamente identificados, contendo imagens que vão de registros pessoais da viagem a experimentações de grande riqueza formal, composições marcadas por um olhar agudo e o uso de ângulos e enquadramentos inusitados, como aquele que mostra seu filho André, ainda bebê, em meio a um roseiral de intenso tom vermelho. A mulher que o segura, provavelmente sua mulher Clarisse, praticamente sai da cena para tornar a imagem mais intensa e perturbadora.
Esse primeiro núcleo, denominado de Vlado Multimídia, traz também uma série de documentos, depoimentos de amigos e companheiros de jornada, bem como textos de autoria de Herzog sobre o cinema, testemunhando tanto uma ação real neste campo como um interesse jornalístico em defesa de um uso social da linguagem. Infelizmente, só conseguiu dirigir um curta metragem, intitulado Marimbás, mas já se preparava para a realização de um documentário sobre Canudos. Tanto as fotos feitas durante sua pesquisa de campo na Bahia como Marimbás, fazem parte da mostra. O catálogo também é dedicado exclusivamente a relação dele com o cinema.
Sua vida pessoal, o trabalho jornalístico e sua permanência como um símbolo de luta contra a opressão (representado em trabalhos como a ação de Cildo Meireles, que carimba notas de dinheiro com a pergunta: “Quem matou Herzog?”) constituem os outros núcleos da mostra. Ao longo de dois anos de pesquisa, que envolveu uma equipe de oito pesquisadores, além da equipe do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog – parceiros na produção da mostra –, milhares de dados e documentos foram coletados. Espalhados pelo espaço expositivo o visitante se depara com uma série de ricos elementos como fac-símiles de seus artigos para vários veículos, cartazes e livros póstumos em homenagem a ele, documentos importantes relativos ao Caso Herzog como a decisão do juiz Márcio José de Moraes que, em 1978, reverteu a versão oficial de suicídio, em meio a objetos de cunho simbólico como sua máquina de escrever e sua câmera fotográfica. São especialmente tocantes itens como o registro de entrada da família Herzog, em 1946, no Brasil e uma carta que seu pai lhe escreveu narrando a vida da família durante a Segunda Guerra Mundial, quando se refugiaram na Itália fugindo da Iugoslávia e do antissemitismo. Ou ainda a fotografia da redação do Estado de S. Paulo, completamente vazia, no dia de seu enterro. Um testemunho visual da enorme solidariedade e comoção causadas pelo seu assassinato pelo regime militar.
“Foi um verdadeiro garimpo. Isso que vemos aqui é apenas a superfície”, conta Luis Ludmer, do Instituto Herzog e co-curador da mostra juntamente com Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural. A ideia é que todo esse material sirva, no futuro, de base para a construção de um site, tornando permanente o acesso a todo esse volume de material, que tende a tornar-se ainda mais amplo com divulgações como esta mostra cuja função não é apenas a rememorar o passado e resgatar a figura do intelectual engajado, fazendo com que ele nunca seja esquecido, mas também construir um modelo de resistência importante em momentos de recuo dos direitos humanos como o que vivenciamos hoje. “Não queríamos nada fúnebre”, afirmam os curadores. Daí a opção por uma museografia aberta, com os vários núcleos em diálogo, marcada por uma certa leveza e rusticidade.
Ocupação Vladimir Herzog
Itaú Cultural – Av. Paulista, 149 – Bela Vista, São Paulo
Até 20 de outubro