A exposição Somos muit+s: experimentos sobre coletividade retoma o pensamento de dois artistas essenciais na segunda metade do século 20, Joseph Beuys (1921–1986) e Hélio Oiticica (1937–1980) para pensar a prática artística hoje.
De certa forma, foi o que fez a 27ª Bienal de São Paulo, Como viver junto, em 2006, que partia das propostas de Oiticica para mapear produções que questionavam a representação por meio da proposta da antiarte e buscavam criar experiências coletivas.
Passados treze anos, faz sentido seguir buscando referência em Beuys e Oiticica? SIM. Nesse período, o mercado de arte no Brasil se expandiu consideravelmente, as instituições de arte da cidade se fortaleceram, e o país entrou em uma guerra contra a cultura. Assim, as as propostas radicais da arte seguem mais necessárias, mas ainda são exercidas em poucos espaços. Contudo, elas são o oxigênio do sistema e, como tal, essenciais para se entender o que pode significar a arte hoje.
Ao visitar a mostra, ouvi uma senhora de sotaque gaúcho comentar com sua amiga enquanto lia sobre o projeto de Arte Útil da artista cubana Tania Bruguera: “Não é a toa que há tanta perseguição à arte nos últimos tempos, porque o que ela [a artista] quer é mudança”, afirmou enfática, como a buscar aprovação. Impossível não ter empatia. É até um alívio perceber que, mesmo apenas em estado de potência, já que a obra de Bruguera não estava sendo ativada, ela deixava claro que o negócio ali não é apenas entretenimento.
Faz todo sentido retomar Beuys porque afinal é dele uma das mais importantes propostas artísticas, defendida desde 1977, como se lê no texto Entrada em um ser vivo, reproduzido no catálogo da mostra, que afirma: “Todo ser humano é um artista, pois ele experimenta a essência criativa em si, a essência formadora que se relaciona a todos os campos de problemas da vida, todos os campos no qual esse ser humano se movimento”.
Essa é a chave de um pensamento ainda pouco explorado, que é a compreensão que a arte é um campo amplo e que pode se desdobrar em vários outros campos. Não se trata aí de algo absolutamente inovador, já que Marcel Duchamp, muitos anos antes já defendia que jogar xadrez era arte, mas Beuys, obviamente, foi muito além.
Fundador do Partido Verde, na Alemanha, em 1980, defensor da democracia direta, ecologista, sua militância sempre foi uma faceta importante de sua atividade artística. No campo da arte, Beuys defendia a ideia de “escultura social”, uma estratégia em conciliar a prática artística com a intervenção social, como ocorreu em Sete mil Carvalhos. Em 1979, por ocasião da Documenta de Kassel, Beuys e moradores do local plantaram sete mil carvalhos, a fim de transformar a árida cidade alemã, uma das mais destruídas na Segunda Guerra Mundial. Hoje, Kassel é um exemplo de “escultura social.
Beuys também era um crítico dos sistemas de exclusão. Expulso da Universidade de Düsseldorf, em 1972, por defender que suas aulas deveriam ser assistidas por qualquer um e não apenas pelos matriculados em suas classes, ele criou a Frei Internationale Universität (Universidade Livre Internacional) junto a outros colegas, em 1983, no seu próprio ateliê, em Düsseldorf.
Como se vê, as dimensões políticas e educacionais são essenciais em seu pensamento, mas não só: ele também tinha uma visão da importância simbólica da arte e as primeiras salas de Somos muit+s comprovam essa preocupação. Além de desenhos que acompanham questões importantes em sua obra, a escultura Bomba de mel no local do trabalho, uma máquina que bombeou mel pelo museu Fridericianum ao longo dos cem dias da Documenta 6, em 1977, trata justamente da infiltração de uma substância natural, agente de fecundação, fonte de vida e imortalidade. Mel e gordura são elementos comuns da poética de Beuys. Com mel ele leva vida e adoça as instituições de arte e, nesse sentido, é de se lamentar que a obra seja vista apenas como uma escultura inanimada, sem de fato percorrer a Pinacoteca.
Contudo, a mostra proporciona outras experiências possíveis de coletividade, como na performance Ágora, de Maurício Ianês, que estará presente durante seus três meses de duração. Nela, ele cria um espaço de convivência, onde serve chá e café e permite que visitantes se manifestem pelas paredes pintadas em vermelho intenso.
Já Monica Nador e o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac) são vistos em uma parceria com o Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca com o projeto Extramuros, que existe desde 2008. Para a mostra foram realizadas oficinas de desenho e xilogravura, com os resultados parte vistos na própria mostra ou na área externa do museu.
Outra experiência é a Escola de Arte Útil, de Tania Bruguera, que ocupa uma sala da mostra com uma intensa programação ao longo de suas 11 semanas de duração, entre elas um workshop de três dias com a própria artista, de 9 a 11 de outubro.
Arte Útil é um conceito desenvolvido por Bruguera nos últimos anos que defende que a arte deve ser capaz servir como ferramenta de mudança social, capaz de ser implementada através de projetos de longo prazo, tema de matéria da edição passada de ARTE!Brasileiros. Tudo a ver com as propostas de Beuys.
De Oiticica, a mostra apresenta o ambiente imersivo Apropriação (Mesa de bilhar , d’après “O café noturno de Van Gogh”), visto pela primeira vez na mostra Opinião 66, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1966. Nele, uma mesa real de bilhar está à disposição dos visitantes em um espaço com paredes vermelhas similares à pintura de Van Gogh. Assim, além de tomar café com Ianês, os visitantes podem também jogar bilhar na mostra. Aí, Oiticica inclui um elemento importante em seu trabalho que é o prazer do jogo como elemento para criação de vínculos, um conceito transformador, especialmente em contraposição às propostas germânicas de Beuys.
É do campo lúdico, aliás, a obra de Vivian Caccuri na mostra, Ode ao Triângulo, que usa o instrumento musical para criar uma instalação sobre os elementos possíveis ligados à sua forma e função, o que reverbera em diálogo com obras do acervo e ativações ao longo da mostra.
Finalmente, o octógono da Pinacoteca é ocupado por uma plataforma para demonstração, criada pelo artista Rirkrit Tiravanija, em 2000, e que vem tendo distintas versões desde então. Trata-se de um espaço livre a ser ocupado por diversas ativações ao longo da mostra, de aulas de ioga a festas de formatura. Lá o Coletivo Legítima Defesa e Aliadxs, formado com a intenção de trabalhar uma poética da imagem da negritude e seus desdobramentos sociais e históricos, apresenta Re-existência Negrx, uma imersão poético-política e mais duas performances.
Com tudo isso, Somos muit+s, com curadoria de Amanda Arantes, Fernanda Pitta e Jochen Volz coloca a Pinacoteca com um espaço vivo e que repensa a arte e seu contexto, assim como fizeram Beuys e Oiticica em seu tempo.