“Negro, escravo, africano, sodomita, feiticeiro, exilado”, afirma Paulo Pascoal, o ator que interpreta José Francisco Pereira, sequestrado da República do Benim para Pernambuco, no século 18, e vendido como escravo. Lá, usava o sincretismo como meio de sobrevivência. Em 1731, Pereira foi julgado pela Inquisição de Lisboa por feitiçaria e sodomia.
A fala na cena de Corpo Fechado: a obra do diabo, de Carlos Motta, na galeria Vermelho, sintetiza as questões que envolvem o Brasil hoje, raízes do racismo fascista que polarizam o país. Motta, contudo, vai mais fundo no filme, associando à escravidão com a inquisição de forma clara através da Carta 31 – O Livro de Gomorra, escrito em 1049 por São Pedro Damião, considerado o primeiro texto da Igreja Católica que condena as práticas homoeróticas.
Corpo Fechado: a obra do diabo foi realizado e exibido me Portugal, no ano passado, em uma encenação sofisticada que mescla além da história de Pereira e da Carta 31, trechos das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin (1892 – 1940), texto canônico da crítica sobre as convenções do historicismo. Próximo do filme, está a projeção do vídeo “Eu marco minha presença com minhas próprias crenças”, onde Paulo Pascoal é entrevistado por Motta e conta as dificuldades que passou quando assumiu sua homossexualidade em Angola, seu país natal.
Essa espécie de espelho multiplicado, onde a história real do personagem no filme se reflete na própria história do ator que o interpreta, é chave para a compreensão da mostra Nós, x inimigx, que ocupa toda a galeria, e parece mais uma mostra institucional que em um espaço comercial.
Nela, Motta cria uma narrativa clara onde os trabalhos são peças que se por um lado abordam o surgimento do preconceito contra a homossexualidade, ao mesmo tempo cria elementos que, longe de se apoiar em um discurso de vitimização, vai em seu reverso para gerar a afirmação da cultura queer.
Já na fachada da Vermelho isto é visto pela apropriação do triângulo rosa, que no nazismo representava os gays condenados à morte, tornando-se a obra Formas de Liberdade: Triângulo, um mural com a própria imagem agigantada e um pôster com uma linha histórica, que narra, desde 1500, fatos relacionados tanto ao preconceito, quanto seu oposto, como a determinação, agora em 2019 pelo STF que transfobia e homofobia são crimes.
É em proposições como essa que práticas artísticas deixam de ser ilustração sobre uma temática, para se tornarem catalizadoras de experiências, gerando novas formas de representatividade, questionando padrões estabelecidos.
Os chicotes expostos no segundo andar da galeria seguem nessa mesma chave, pois se no filme Corpo Fechado: a obra do diabo os chicotes são usados como forma de martírio, na série denominada Corpo Fechado, se aproximam dos objetos de fetiche da cultura gay. Essa cena hardcore, aliás, retratada por Robert Mapplethorpe (1946 – 1989) em imagens icônicas, como que ele insere o chicote em seu ânus, é apropriada por Motta, que reencena a fotografia de 1978, escurecendo-a, em uma espécie de contextualização das questões da mostra.
É no vídeo We the enemy (2017), que dá título à mostra, onde o artista posiciona a questão central da mostra. Criado pelo coletivo SPIT! (Sodomite, Inverts, Perverts Together), composto por Motta, o escritor John Arthur Peetz e o coreógrafo Carlos Maria Romero, o vídeo é uma compilação de dezenas de termos depreciativos e insultos, ditos pela artista grega Despina Zacharopoulos, como “pervertidos, bambis, bonecas, pederastas, bichas” com uma conclusão enfática: “somos e sempre seremos os inimigos”.
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