Na modesta entrada da rua Álvaro de Carvalho, 427, no centro de São Paulo, é dona Irene Silva quem faz as honras da casa. Moradora de lá, é ela quem cuida da entrada, durante o dia, por onde cerca de 500 moradores de 120 famílias passam diariamente para entrar na Ocupação 9 de Julho, gerida pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).
Além da entrada, dona Irene também cuida do jardim e da horta da ocupação, “mãos ótimas que quando plantam tudo dá”, como escreveu o artista Lourival Cuquinha, ao responder minha mensagem solicitando o nome dela.
É dona Irene, com sorriso no rosto, que indica como chegar na galeria Reocupa, onde ocorre a mostra O Que Não é Floresta é Prisão Política, com cerca de cem artistas, entre eles o próprio Cuquina. Arte no vão central de um espaço de resistência. Eu me senti em Bacurau.
A mostra, em cartaz de quarta a domingo, das 14h às 20h, ocorre desde setembro com 74 artistas, sendo que outros 15 foram agregados em outubro e, agora em novembro, outro grupo será adicionado. Não se sabe exatamente até quando a mostra permanece, mas é seguro que segue até o fim do ano.
Artista é o termo adequado para denominar quem dela participa, mesmo que nem todos ali têm na arte sua principal atividade. Há desde figuras reconhecidas internacionalmente no circuito da arte, como Ernesto Neto e Renata Lucas, em meio a outros que vivem e produzem na própria Ocupação, enquanto outros se destacam em áreas próximas, como a fotojornalista Marlene Bergamo ou o filósofo Peter Pál Pelbart. No entanto, ali é o lugar mais adequado para por em prática a famosa expressão de Joseph Beuys, que “todo ser humano é um artista”.
Apesar dos 89 nomes indicados nos mapas que indicam a disposição das obras na mostra, ao menos outras duas dezenas também participam com intervenções ao longo de outros oito andares da ocupação – a galeria Reocupa é de fato no térreo do edifício, onde está a entrada para a avenida 9 de julho, que não se encontra em uso, e todo seu entorno.
Com 14 andares, o prédio foi construído como sede do INSS em São Paulo, inaugurado em 1943. Projetado por Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício é um dos ícones da arquitetura paulistana durante a Era Vargas, presidente homenageado com busto na entrada, que desapareceu ao longo da história recente. Desde 1997, ocupações passaram a ocorrer ali, depois de 20 anos de abandono, e a atual, organizada pelo MSTC, teve início em 2016.
Nela, artistas vêm colaborando de forma orgânica desde o início. O Aparelhamento, por exemplo, que surgiu em 2016, quando a Funarte começou a ser desativada pelo governo Temer, ajudou a organizar a cozinha comunitária, que prepara almoços festivos uma vez por mês, e tem sido importante para a manutenção das condições do edifício.
Na galeria, quem fala das obras é Felipe Figueiredo, monitor e ativista que vive na Ocupação desde seus primeiros momentos, em 2016, e que sabe não só de cada trabalho, mas da própria história do movimento. Ele desenvolve sua narrativa contando desde a importância de levar colchões nas primeiras horas de uma ocupação a estimular o visitante a ouvir Serenata de Amor, de Georgia Miessa, uma compilação de canções machistas na música popular brasileira, desde 1920.
Vivendo na Ocupação, Felipe garante um vínculo estreito entre produção artística e seu contexto. Não que os trabalhos sejam colocados ali alheios ao espaço, como se ele fosse um cubo branco. Longe disso. Mas é justamente esse caráter vital desencadeado pela ocupação que dá particularidade e relevância, e a voz de Felipe é essencial. Mas entrar na Reocupa é também sentir o cheiro das comidas sendo preparadas nos andares acima, dos produtos de limpeza em uso, é ouvir as crianças brincando, é ver o tempo desgastando um edifício que já foi público e se encontrava abandonado. Tudo muito distante dos espaços tradicionais e higienizados da arte. Tudo muito mais potente.
Não só o ambiente é libertário, como as próprias estratégias de curadoria, a começar pela seleção do nome da mostra. Quando desce do primeiro andar para a Reocupa, pode-se ler a troca de mensagens no grupo de artistas que participam da mostra para a escolha do nome. “É a nossa vaza-jato”, explica Cuquinha, ao descrever o processo de transparência assumido, mesmo que os nomes estejam apagados. O importante é o processo, afinal.
A maioria dos artistas ali presentes tem colaborado na ocupação de forma atuante e sistemática, seja na cozinha, seja em outras funções. Mas não necessariamente. Quem inaugurou o espaço, aliás, foi o carioca Nelson Félix, no ano passado, paralelamente à sua presença na Bienal de São Paulo, a convite do Aparelhamento.
A atual mostra levou quatro meses para ser concebida e, como o nome indica, parte de duas questões bastante atuais: a floresta como espaço de sobrevivência frente às queimadas e ao genocídio indígena, e as atuais prisões políticas, que vão de Lula a outras lideranças populares, como Preta Ferreira, filha de Carmem Silva, do MSTC.
Não por acaso, obviamente, Lula, Carmem e Preta são lembradas neste cenário, presentes em diversos trabalhos, incluindo aí obras de Surpresinha de Uva, o nome dado para quando a autoria não é essencial e uma obra é criada coletivamente.
Mas o essencial realmente é perceber como essa exposição dá início a uma nova chave de posicionamento artístico, estimulado através de uma rede de colaboração fora do circuito institucional tradicional e longe do circuito comercial convencional de galerias e feiras, porque lá há obras vendidas para manutenção do espaço e auxílio à ocupação, apontando que é possível se repensar a relação de vendas na arte. Nesse sentido, a Galeria Reocupa se soma a outras estratégias envolvendo artistas, como a Casa Chama, em São Paulo e Lanchonete<>Lanchonete, no Rio de Janeiro. Se os tempos atuais parecem pesadelos constantes, O Que Não é Floresta é Prisão Política mostra que o sonho ainda tem espaço e pode ser viável. E dona Irene ainda se despede sorrindo com um convite: “Volte Sempre!”