“Foi a perda de um amigo” é a frase com a qual concordam os galeristas Raquel Arnaud e Luiz Sève, que representam o artista venezuelano Carlos Cruz-Diez. Falecido em julho deste ano aos 95 anos de idade, a ideia que deixa na memória daqueles que o conheceram é de um homem que transbordou sua fé na arte, trabalhando com vigor nas decisões que envolveram o seu trabalho até o fim.
Na Galeria de Arte Ipanema, da qual Sève é proprietário, foi realizada a até então última exposição do artista no Brasil, em 2014, intitulada Um Olhar Sobre a Cor. Agora, o Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, abriu a mostra Cruz-Diez: a liberdade da cor, em 9 de novembro. A exposição é a última a ser apresentada em todo o mundo que teve a chancela do artista, que participou de todo o processo de concepção ao lado do curador Rodrigo Villela, diretor executivo e artístico da instituição paulistana.
É da coleção de Raquel Arnaud que vêm duas das quatro obras que integram a primeira sala da exposição. Em uma delas, uma pequena fisiocromia de 1965, o trabalho de Cruz-Diez ainda passava por um período pré-industrial, conta Villela. “Depois o trabalho dele vai se tornando muito industrial. Ele tinha essa procura de fazer com que o trabalho saísse da escala de artesão. Ele falou que não se dedicou à pintura porque a pintura tinha muito artesanato e ele queria algo que pudesse ter maior escala”, comenta o curador. Na parte externa do edifício, uma obra efêmera de grandes proporções, escolhida pelo próprio artista, também faz parte da individual.
O artista foi muito assertivo naquilo que acreditava. Em texto de 1967, ao qual deu o título de Minhas Ideias Sobre a Cor, propõe o conceito de “cor autônoma”, na qual a cor não depende de forma, especificidade ou de suporte. E, desta forma, extrapola suportes e técnicas, utilizando vídeos, pinturas, instalações, fotografias e se apropriando de paredes, de ruas e até mesmo de jardins.
No mezanino da instituição, o público encontra a obra Labirinto Transcromia (1965/2017), pela primeira vez exibida no Brasil. “Ele traz para a experiência todo o aspecto de trabalho com a cor, que ele propõe, mais voltado para o corpo”, destaca o curador. A proposta é que o público caminhe entre esse labirinto de peças retangulares presas por fios de nylon e o efeito de sobreposição das cores aconteça aleatoriamente, refletida nas paredes brancas e no concreto do espaço. Essa transferência para as paredes se dá em espécies de figuras dançantes, às quais se misturam as sombras das pessoas que por ali passam, presas entre a instalação labiríntica que irradia cores. A cinética, a cromática e o geométrico do artista são completamente vivenciados na obra.
A primeira obra no subsolo é Ambiente Cromointerferente, 1974/2019. As projeções em quatro paredes caminham de forma reta, enquanto no chão caminham para encontrar uma a outra, como se somassem, formando figuras randômicas nessas junções. O público se torna parte da obra quando as projeções recaem sobre os corpos que adentram a sala. Na sequência, vê-se duas obras efêmeras adesivadas na parede: “As obras são estáticas, mas o movimento está sempre presente na percepção do olhar”, diz Villela.
Uma das obras mais icônicas, Cromossaturação é instalada em um espaço composto de três salas onde são montadas, respectivamente, luzes vermelha, azul e verde. À medida que se anda entre elas e dependendo de onde o olhar parte, a percepção da cor sofre modificações. “É realmente uma pintura no espaço”, comenta o curador. Objetos em forma de cubos são espalhados pelo espaço também, dando uma dimensão de como as cores afetam cada uma de suas partes.
Um núcleo mais documental traz duas televisões que exibem vídeos: um com fotografias de obras em espaços público, trazendo a questão da arte envolvida com a arquitetura, e outra com depoimentos de Cruz-Diez sobre os trabalhos.
Um outro artista
A última sala da exposição abarca vinte fotografias em preto e branco tiradas por Cruz-Diez desde o início de sua carreira. Rodrigo conta que foi um desafio convencer o artista a mostrá-las junto aos outros formatos que a exposição abraça: “Conseguimos compor de uma maneira que ele ficou contente, que é ter uma separação das instalações e criar um cantinho mais íntimo para essas fotografias, não conectando com o resto da produção”. As fotografias trazem elementos tradicionais, como retratos e paisagens, evidenciando um artista jovem. “Quase que temos que fazer um exercício de abstração para pensar que é o mesmo artista”, brinca.
Alguns dos cliques de Cruz-Diez lembram Pierre Verger e até Cartier Bresson, na opinião do curador, e têm uma procura certa abstração. São imagens desde a Venezuela dos anos 50 a fotos de viagens à Espanha, que “tem uma coisa muito do calor da hora”, de acordo com Rodrigo, mas também um caráter documental evidente: “Quando eu vi essas fotos, fiquei muito impactado justamente porque não dá para imaginar que é o mesmo artista”. O curador procurou fazer uma seleção que fosse representativa de um contexto que conectasse suas diferentes abordagens da fotografia.
Rodrigo revela que o contato para a exposição foi o primeiro que teve com Cruz-Diez, apesar de já conhecer muito de sua obra. O curador ficou impressionado com a infraestrutura da equipe do artista, muito afinada entre si, com o trabalho e com o artista: “Tinha uma coisa de uma presença muito forte dele e uma clareza total”, conta ao se referir também a um “cotidiano de trabalho” vivido pelo artista mesmo com 95 anos de idade.
As fotografias ainda mostram um Cruz-Diez em relação muito afetiva com a Venezuela, para onde voltava com certa frequência, residindo na França desde a década de 60. Rodrigo comenta que ele falava muito de seu país de origem. Uma de suas maiores obras está no aeroporto Simon Bolívar, em Caracas, que se tornou ponto de partida de muitos venezuelanos devido à crise vivida no país.