*Por Clarissa Diniz
No centro da exposição SUTUR|AR LIBERT|AR — individual de Marcela Cantuária apresentada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em julho —, estava a mandala de Tarot desenvolvida por Alejandro Jodorowsky com a intenção de dar a ver sua simultânea unidade e pluralidade: “O Tarot tem que ser visto. (…) É uma linguagem que fala do presente”1, e não do futuro.
Interpretar o Tarot é também uma terapêutica. Segundo Jodorowsky, ao nos defrontarmos com suas “imagens ricas em símbolos”, devemos “rejeitar [os significados] que são o produto da angústia e escolher os que [nos levam] para perto da consciência divina”2. É, por isso, como uma terapêutica coletiva que Marcela Cantuária tem encarado as imagens dos traumas e das feridas coloniais, elegendo, em seu vasto imaginário, aquelas às quais se dedica a interpretar, atribuindo-lhe sentidos.
Sua obra produz um imaginário singular ao intencionalmente corromper a história hegemônica e os significados por ela atribuídos às memórias coletivas. Cantuária provoca glitches e torna falhas as imagens legadas pelo mundo colonial, arregaçando o necessário espaço simbólico por onde brotam suas alegóricas pinturas. Constituídas a partir de colagens de imagens diversas, retiradas de contextos distintos e ressignificadas sob a singularidade do regime estético-político de suas pinturas, as alegorias da artista disputam a historicidade vigente, ocupando-a com heroínas, anônimos e memórias que têm sido dela programaticamente excluídas.
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Eram muitas as alegorias reunidas em SUTUR|AR LIBERT|AR.
Em volta da mandala estavam as pinturas da série Rainhas (2018) – quatro mulheres cujas potências são alegorizadas como atualização e refundação dos arquétipos das damas do Tarot. Como alegorias, sustentam-se sobre a força simbólica e social de elementos como pombos, foices, biquínis ou balaclavas, pintados, por sua vez, como partes de um regime de intensidade de cor, de matéria e de espaço que implicam, ao mesmo tempo, nossa retina, nosso corpo, nossa memória e nossa imaginação.
Às dimensões arquetípicas femininas estavam, por sua vez, combinadas alegorias de guerreiras, ativistas, mães, militantes e outras mulheres cujas vidas foram e são sinônimo de luta por justiça social e liberdade. Dentre outras, Jovita Feitosa, Juana Azurduy, Dolores Cacuango, Tránsito Amaguaña e Marielle Franco integram a série Mátria Livre (2018/19), na qual são alegorizadas através dos símbolos das lutas que encamparam. As pinturas instituem imagens nas quais essas mulheres não são índice de uma batalha perdida, mas ícones de uma territorialidade liberta e matriarcal: historicidade pautada num porvir por elas já habitado na medida em que foram suas histórias que o constituíram e que permitiram com que chegasse até aqui na forma de um futuro em luta.
Não à toa, Voltarei e serei milhões – frase do revolucionário indígena Tupac Katari – torna-se o título da pintura que Cantuária dedica a Marielle Franco, a qual, sentada numa cadeira-trono de mãe de santo que se tornou ícone dos Panteras Negras (simbolizados, por sua vez, por uma pantera aos pés da personagem central), segura a cabeça do governador Wilson Witzel numa lança enquanto, no peito, sustenta a imagem da Favela da Maré.
Do vasto conjunto de alegorias propostas por Marcela destacam-se, ainda, duas que lidam diretamente com símbolos do poder, da colonização e da nação: a cruz cristã (Jamais uma estrela na bandeira do norte, 2019) e a bandeira do Brasil (Fantasmas da esperança, 2018). Fragmentadas pela alegorização da artista, enquanto a cruz surge em partes e de cabeça para baixo, a bandeira tem seu círculo central descolado do plano da pintura, adquirindo verso e somente voltando a encaixar-se quando nosso corpo, no centro daquela espacialidade, faz coincidir as linhas de fuga da instalação. A essas estruturas decompostas, Cantuária sobrepõe imagens adversas da formação e da atualidade do Brasil, contradizendo suas interpretações e sentidos oficiais.
Como também acontece nas séries de pinturas dedicadas às ditaduras na América Latina, às guerras ou ao trabalho industrial e sua relação exploratória, a pesquisa iconográfica de Marcela Cantuária encontra símbolos e imagens que, relacionados, montam as alegorias que nos advertem da coabitação de outras histórias nos interstícios da história oficial. A partir da memória de lutas passadas e da evocação das forças do porvir, elabora um imaginário cuja historicidade não se circunscreve cronológica, mas politicamente. Como alegorista, não “retrata” personagens ou “representa” momentos históricos: as matérias das obras de Cantuária são menos as imagens do que os imaginários – ambiciosa e insurgentemente – performados em suas alegorias.
Porque se fazem no âmbito dos sentidos sociais, essas pinturas são ofertadas à nossa “interpretação” à semelhança de um baralho de Tarot, desejosamente convocando-nos a lê-las para que possam, por seu turno, realizar-se. Sua força política – e socialmente mágica – é a de ser um imaginário instituinte que, ao possibilitar que reconheça a si própria a coletividade interessada e capaz de interpretá-las, institui uma espécie de comunidade semântica cujos laços sociais, políticos e estéticos são experimentados através das alegorias de Marcela Cantuária. Nossos universos simbólicos são povoados pelos imaginários que as pinturas performam e pelxs corpxs por eles imantados: diante de tanta gente e tanta voz, nos sentimos menos sós.
Enquanto institui uma comunidade com a qual podem se identificar sujeitos diversos (inclusive aqueles que ocupam posições sociais contraditórias entre si), Marcela Cantuária – que há anos milita junto às Brigadas Populares – busca pavimentar trajetórias político-econômicas singulares para sua obra, visando friccionar a cumplicidade da arte com um patrimonialismo benevolente e canibal que tudo consome porque tudo compra. Por isso, ao final de SUTUR|AR LIBERT|AR, não vender Voltarei e serei milhões para algum dos muitos colecionadores que a disputavam e, alternativamente, doá-la ao Museu da Maré, é um gesto político que enuncia uma posição compromissada com a dor e sua terapêutica para além de uma alegorização extrativista.
É o que reivindica a artista quando, depois da doação, incide sobre nossas responsabilidades quanto ao endereçamento social da arte que produzimos: «doe a quem doer».
¹Alejandro Jodorowsky sobre o Tarot de Marselha. Trecho retirado dos extras do filme A Montanha Sagrada.
²Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa. The way of Tarot: the spiritual teacher in the cards (2004). Tradução da autora.