“Certo, certo. Não esqueçam o que vocês verão aqui”. Esse foi o comentário feito por um dos frequentadores do barzinho Kobune a Munemasa Takahashi, em 26 de abril de 2011, depois dele contar que não estava na província de Miyagi (Japão) como mais um voluntário, colaborando no local que havia sido atingido um mês e meio antes da sua visita, por um terremoto de magnitude 9.1, e que movimentou muralhas de água que bombardearam a costa da ilha.
Takahashi, que havia estudado fotografia e construído uma vida em torno dela, se sentia desamparado com sua impotência diante do desastre. “Quando eletricidade, gás e água pararam, quando não havia comida ou combustível e não havia como se aquecer, não havia nada que a fotografia pudesse fazer para ajudá-los. As fotografias pareciam documentar e entregar as cenas do terrível evento às pessoas em lugares seguros”, ele viria a explicar, sobre a cobertura da tragédia em imagens, no prólogo do livro Tsunami, Photographs and Then, organizado posteriormente por ele num esforço de retratar a construção dos projetos Memory Salvage e Lost & Found em uma publicação bilíngue – japonês e inglês – oferecendo ricos detalhes, entrevistas com visitantes das exibições e, claro, algumas das imagens expostas.
Antes disso, sua maior esperança para evitar a inércia diante da tragédia, era viajar até uma das áreas menos afetadas na província, gastar dinheiro com os comerciantes locais e tentar movimentar um pouco a economia do lugar.
“Por favor, me avisem se vocês puderam colaborar”, dizia uma mensagem espalhada pelas redes oito dias depois de sua visita. Era um chamado por voluntários para integrarem os esforços de limpeza e catalogação das fotos – retratos de família, registros caseiros etc. – levadas pelo tsunami e eventualmente resgatadas pelo SDF (Forças de Autodefesa).
Respondendo à convocação, Takahashi entrou em contato com o Professor Kuniomi Shibata, que conduzia o projeto Memory Salvage (Salvamento da Memória), sob supervisão da Corporação FUJIFILM. Neste momento, os voluntários ainda trabalhavam na sala de Shibata, na Universidade Feminina de Otsuma, e haviam barreiras a serem contornadas para que as pessoas pudessem procurar pelas fotografias em seus computadores – mais tarde dois softwares foram desenvolvidos para que as imagens pudessem ser encontradas de acordo com reconhecimento facial e área em que foram resgatadas. Era necessário digitalizá-las. Contudo, o fornecimento de eletricidade era escasso e irregular, o que significa que eles precisavam de uma maneira para fazê-lo sem depender da fonte de alimentação inconsistente, ou seja, utilizando câmeras digitais. O obstáculo do método, por sua vez, era a escassez de equipamentos e o ambiente de trabalho. Era contaminado, cheio de pequenas partículas de poeira do lodo seco que poderiam danificar os equipamentos, significando que qualquer ferramenta teria que ser doada, e não emprestada. Incrédulo, novamente, Takahashi enviou um pedido à web. Os apetrechos foram oferecidos em poucas horas, alguns por totais desconhecidos do fotógrafo, outros por colegas e professores de sua escola de fotografia.
Conforme o processo de limpeza e digitalização começou a caminhar tranquilamente, com 20 a 80 voluntários comparecendo todos os finais de semana, as fotografias reproduzidas começaram a se acumular. Dessa forma foi criado um espaço para devolvê-las aos proprietários. Elas foram indexadas e reunidas de volta em álbuns físicos, com três imagens em suas capas para identificação pelo antigo dono, fornecendo o retorno de uma parcela daquilo que lhes foi usurpado pelo desastre. Até 2014, pelo menos 300 mil fotografias físicas haviam sido retornadas aos seus donos. Talvez, assim como a personagem Hana, do escritor Amós Oz, as pessoas se apeguem à memória como alguém que se agarra a um parapeito, num lugar alto, e numa época em que as coisas são tão efêmeras elas confiam lembranças a dispositivos externos porque querem deixar provas que as identifiquem.
Hopeless Box
As fotos chegavam ao projeto lavadas, encharcadas e até completamente obliteradas. Por um tempo, aquelas danificadas consideravelmente, cujo estado era praticamente impossível de passar por restauro, eram designadas para o Hopeless Box (“caixa sem esperança”), uma solução para deixá-las intactas até que a equipe descobrisse qual seria seu destino, embora cada vez mais colaboradores expressassem que seria melhor simplesmente descartá-las. Com o andar da campanha, uma questão que ainda martelava a cabeça dos organizadores era a possibilidade de fornecer um retorno financeiro para a comunidade afetada. Um esquema de moradias temporárias começava a ser implementado e necessitava verbas para custear sua construção e seus trabalhadores. Eles concordavam que era significativo mostrar esses registros a quem não podia visitar o acervo.
Como escreveu certa vez o pesquisador Boris Kossoy, “desaparecidos os cenários, personagens e monumentos, sobrevivem, por vezes, os documentos”
Uma resolução foi expor as fotos que outrora estavam perdidas, surgindo assim o Lost & Found Project, levando-as da Galeria Internacional da Fotografia, no Japão, até o Centro para Fotografia Contemporânea, na Austrália, e a Fundação Aperture, nos Estados Unidos. “Nós optamos por exibir as fotos em um formato de exposição porque queríamos que as pessoas as vissem pessoalmente, não através de material impresso ou da Internet”, relata Takahashi, notando também que logo antes da exposição sair do papel os organizadores ainda se faziam perguntas como: “E se não pudermos arrecadar dinheiro suficiente para as habitações temporárias? E se for eticamente errado mostrar as fotos publicamente?”.
Seguindo o sentido oposto, a mostra se tornou uma forma de entregar uma narrativa sobre as pessoas atingidas pelo tsunami que fugisse de uma história recheada com números que involuntariamente seria traduzida em um conto sobre tragédia ou uma alegoria forçosa sobre esperança diante do caos. Lost & Found – com registros fornecendo ricas eminências de história, abraçando uma constelação maior do que nos resta da tragédia e também imagens visualmente impressionantes como resultado da sua deformação química – fornece um espaço de suspensão nessa dicotomia.
Por que fotografamos?
“Por que as pessoas estão sempre tirando fotos?” é uma questão que parece assolar recorrentemente Munemasa Takahashi, pelo menos ao longo da escrita do livro Tsunami, Photographs and Then.
A fotografia cria uma realidade que existe precisamente nela, nem antes, nem fora dela, fornece um traço indicial de quem esteve lá, como se pareciam. Walter Benjamin afirmaria que “no culto da lembrança dos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto das imagens encontra-se o último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, nas fotos antigas, pela última vez emana aura. É isso que lhes empresta aquela melancólica beleza, que não pode ser comparada a nada”.
Caso as fotografias agrupadas para o projeto Lost & Found sejam bem recebidas pelos visitantes, talvez seja possível falar de uma ressignificação daquilo que essas fotografias simbolizaram, se distanciando de um exclusivo testemunho de desastre, voltando a se aproximar de um canalizador das questões universais do ser humano; como escreveu Ursula Le Guin, do que há “no ventre do tempo, e morte, e chance”.