A 13ª Manifesta e a 11ª Bienal de Berlim serão abertas em agosto e setembro, respectivamente, apenas alguns meses após a Europa atravessar períodos de quarentena de forma radical, bem diferente do relativismo tropical-suicida brasileiro. Se há algo que caracteriza bienais é servir como um termômetro do presente. Então, a pergunta inevitável é como se torna possível seguir com as mostras concebidas antes desse momento tão dramático, marcado pelo colapso da saúde por um lado, e de manifestações antirracistas decorrentes do assassinato de George Floyd por outro.
O que parece claro em ambas é que as duas bienais já partiam de questões que, se não previam um vírus como o que se alastrou pelo planeta, já apontavam para um quadro um tanto catastrófico. “Para nós, a pandemia deixa claro que os temas da 11ª Bienal de Berlim, como o combate ao fanatismo e ao extrativismo, a vulnerabilidade de indivíduos que vivem em campos ou situação de confinamento, a existência de corpos sexodissidentes, adquirem uma urgência maior”, afirmam as curadoras – o coletivo se autodefine na voz feminina – da mostra, María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Agustín Pérez Rubio, em uma mensagem coletiva, por e-mail.
Segundo elas, “contra essa distopia, evidenciamos práticas artísticas que valorizam a reivindicação territorial, iniciativas de solidariedade como o eco e o hidrofeminismo, ou mesmo forças que se afirmam como autocurativas. Com a Covid-19, os países fecharam suas fronteiras, e todo o problema da mobilidade política ficou invisibilizado”.
Berlim, programada agora para ser aberta em 5 de setembro, foi concebida por um grupo de curadoras com pulsação latino-americana – Pérez Rubio, único europeu, encerrou em 2018 período de quatro anos à frente do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). A bienal já se apoiava no pensamento dissidente de pensadoras como Nise da Silveira (1905-1999). Com seu trabalho precursor no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, em proporcionar aos pacientes vivências em ateliês de pintura, ela foi também criadora do Museu de Imagens do Inconsciente. Obras criadas por dois pacientes foram selecionadas para irem a Berlim.
“O termômetro para entender o presente não difere tanto do diagnóstico da doutora Nise da Silveira, isto é, de que a humanidade carece de calor humano e de que ‘somos todos responsáveis’”, lembram as curadoras de Berlim.
O interesse pela produção artística de pacientes de institutos psiquiátricos encontra ressonância na figura do artista Flávio de Carvalho (1899-1973). Ele foi o criador do Clube dos Artistas Modernos (CAM), onde organizou, em 1933, o evento “Mês das Crianças e dos Loucos”, com o psiquiatra Osório Cesar, que também trabalhava arte com os internos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri.
Por sua vez, o CAM é outra inspiração para a própria escala desta edição da Bienal de Berlim, sem anseios espetaculares, mas de forte enraizamento na periferia da capital alemã, já que a sede das primeiras atividades da mostra é no local onde eram fabricadas impressoras Rotaprint, no bairro operário de Wedding. Foi lá que a artista brasileira Virginia de Medeiros participou da exp. 2 com o coletivo Feministische Gesundheitsrecherchegruppe, um grupo feminista de pesquisa em saúde, entre novembro do ano passado e fevereiro deste ano.
Segundo as curadoras, a 11ª Bienal de Berlim foi “concebida de forma porosa e processual; o espaço experimental que abrimos ao público no ano passado em ExRotaprint nos permitiu apresentar as ideias que estavam esboçadas no projeto e ensaiar publicamente uma relação com a audiência local”. E resumem: “Não trabalhamos com uma moldura que veio pronta para ser simplesmente aplicada aqui; é sempre difícil trazer um contexto sem cair no exotismo e foi preciso calibrar muita coisa em termos discursivos.”
Além do ExRotaprint, a última “experiência da Bienal de Berlim, chamada de epílogo, vai ocorrer em outros três espaços: o Kunst-Werke (KW), sede original da mostra, o segundo andar do Gropius Bau, imenso espaço expositivo construído no século 19, perto da totalmente renovada Potsdamerplatz, e a galeria daad, no bairro de Kreuzberg, uma região de imigração turca.
Grand Puzzle
A atenção à cultura local, à cidade onde a mostra se realiza tem sido uma marca e uma qualidade muito particulares da Manifesta, a bienal nômade que a cada edição acontece em uma cidade europeia. Em 2020, a escolhida foi a cidade de Marselha – já está definido em que 2022 a Manifesta será em Pristina, no Kosovo – e a abertura agendada para o próximo 28 de agosto.
“Nosso público é composto por 75% dos visitantes regionais e agora, ainda mais do que antes, precisaremos transformar a bienal em uma plataforma de mudança social e cultural focada localmente, que possa ajudar a fortalecer as infraestruturas já existentes e tornar-se mais proeminente ajustada em direção ao que as comunidades precisam”, explica a holandesa Hedwig Fijen, diretora da Manifesta.
De fato, nas últimas edições, e especialmente a mais recente, em Palermo, a mostra focou bastante na cidade e agora, em Marselha, a diretora aponta que a tendência já tinha esse sentido: “A Manifesta 13 já estava bastante alinhada com algumas das demandas que agora enfrentamos, de avançar deliberadamente em direção ao local e em direção ao verdadeiro engajamento com a comunidade”.
Com um time de curadores internacionais, composto por Alya Sebti (galeria ifa, de Berlim), Katerina Chuchalina (Fundação V-A-C, de Moscou) e Stefan Kalmár (ICA, de Londres), uma das ferramentas para uma reflexão sobre a cidade é o Grand Puzzle, uma pesquisa urbana da MVRDV (de Winy Maas). “Trata-se de um estudo interdisciplinar que analisou Marselha e reuniu uma quantidade incrível de dados que serviu como uma ferramenta para contextualização, análise e inspiração a partir da qual os participantes da Manifesta 13 foram incentivados a se engajar no desenvolvimento de intervenções criativas que se envolvem com a cidade”, explica Fijen.
Em Palermo, na edição passada, esse estudo foi realizado pelo escritório de arquitetura de Rem Koolhas, um excelente guia sobre a cidade italiana.
Tendo em vista as novas condições impostas pela pandemia, os locais que sediarão a exposição principal não abrirão mais todos juntos, com horários alternados para evitar multidões e sem a semana de abertura para convidados. “Em vez disso, o programa de lançamento será espalhado em um período de três meses, dividido em eventos ainda menores, como um festival”, conta.
A mostra, intitulada Traits d’union.s (tratados de uniões), irá ocorrer em seis espaços da cidade, nenhum deles com histórico em arte contemporânea, exceção do Museu de Belas Artes. Assim, a Manifesta segue produzindo intervenções que favorecem diálogos com a história local, ao colocar a produção atual em espaços inusitados como o Musée Grobet-Labadié, um palácio do século 19.
Com 47 participantes, entre eles muitos ligados à literatura, como Georges Bataille e Roland Barthes, a presença brasileira nesta edição vem com Benjamin de Burca & Bárbara Wagner.
Voltada ao local e com engajamento da comunidade, a Manifesta se revela uma referência importante quando o mundo da arte dá uma parada e precisa se reinventar para além do incansável circuito vip, dos eventos caros e desnecessários. ✱