“A Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos”, Susan Sontag.
A frase que serve de epígrafe para este texto foi retirada do ensaio Contra a interpretação, publicado no livro homônimo da pensadora norte-americana Susan Sontag. Desde que, em meados dos anos 1980, a li pela primeira vez, dela me apropriei porque traduzia bem uma sensação que já havia vivenciado algumas vezes e que, no futuro, voltaria a experimentar.
Em certa medida, para a autora e para mim não interessa – pelo menos não em um primeiro momento – o que a obra de arte de verdade “quer dizer”; não interessa o que ela “significa”; não interessa seu “conteúdo”. O que na verdade importa é como ela é capaz de mexer com nossa consciência e nossas sensações, transformando a mente em nosso sexto sentido. Quando isso ocorre, também não interessa quem é ou quem foi o artista, onde nasceu, onde viveu, seu “contexto” etc.
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A primeira obra que me deixou nervoso desse jeito foi uma pintura de Leonello Berti, um artista italiano que morou em Ribeirão Preto, onde nasci. Eu era um adolescente e fui visitar uma exposição de artistas da cidade, antes que ela fosse enviada para exibição na Europa. Não me recordo qual o título da pintura e muito menos onde ela foi parar [1]. Sei apenas que, frente a ela, tive a certeza de que via uma obra de arte verdadeira. Pelos eriçados, uma extrema excitação e a mais absoluta certeza de que tinha valido a pena ter vivido a vida toda só para estar ali, a contemplá-la.
Depois de alguns anos, em 1977, já em São Paulo e estudante de artes na ECA USP, fui até a antiga Galeria Arte Global visitar uma instalação de Julio Plaza, As Meninas (ou Os Meninos): no meio da instalação me vi atingido por uma espécie de raio. Assustado no meio daquela instalação tão simples e, ao mesmo tempo, tão poderosa, repentinamente me dei conta de todo meu corpo e, sem saber direito o que fazer, sai apressado da sala, da galeria, e só fui parar para pensar o que tinha ocorrido quando já estava do outro lado da rua (a galeria ficava na Alameda Santos). Lembro que, na sequência, respirei fundo e voltei para a galeria. A partir daquela experiência, a arte nunca mais foi a mesma para mim, e eu nunca mais fui o mesmo para a arte [2].
Anos depois, em 1988, num final de tarde, passando pela rua Estados Unidos, entrei na Galeria São Paulo. Ao me aproximar de uma das pinturas penduradas na parede, percebi que a tela prosseguia como desenho na parede! O que era aquilo, meu Deus do céu? Então eu tinha vivido também todos aqueles anos para me deparar com aquela espécie de revelação que me transformava à medida que observava cada uma das obras ali expostas? (na verdade a mostra era uma grande instalação).
Quando consegui me recuperar, resolvi que tinha que saber a autoria daquelas peças. Finalmente alguém da Galeria apareceu e me disse que aqueles trabalhos eram de Carmela Gross. A artista abriria a mostra dali a alguns dias e só faltavam as etiquetas para terminarem a montagem.
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(Não creio que um fato que me ocorre agora tenha influenciado essas três experiências tão poderosas: embora tenha sido aluno apenas de Carmela Gross no Departamento de Artes Plásticas da ECA USP, Julio Plaza e Leonello Berti também tiveram alguma ligação com a minha formação: Julio, na época, ensinava no mesmo Departamento em que eu era aluno e Berti tinha sido professor da Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto, quando fui aluno do curso infantil daquela Escola.
Por outro lado, e para aplacar qualquer possibilidade de endogenia, se essas foram minhas primeiras três experiências com a arte verdadeira, elas não foram as únicas. Obras de Vuillard, Giambologna, Mike Kelly, Andy Warhol, Caravaggio, Sophie Taeuber-Arp, Iran do Espírito Santo e Mira Schendel, entre poucos outros, também já me deixaram nervoso).
Acredito que muitos tiveram experiências semelhantes a essas que descrevi; muitos, com certeza, já sentiram corpos e mentes mobilizados num tipo de experiência impossível de ser descrita em palavras – lembrando do próprio Julio Plaza, no catálogo da mostra de 1977: “A arte é importante demais para deixá-la na mão do… verbo”. Mas o que gostaria de acrescentar aqui é que experiências assim tão fortes não se dão, ou não se dão apenas, quando você, de chofre, se depara com uma obra de arte já finalizada. Outra experiência que também pode nos deixar nervosos – e por períodos renovados – é quando acompanhamos a produção de uma obra que, desde seu início, dá sinais de sua potência transformadora.
Há anos sigo o percurso profissional de Alfredo Nicolaiewsky, artista de Porto Alegre, que, além de suas atividades docentes junto ao Instituto de Artes da UFRGS, desenvolve pinturas, desenhos e apropriação de imagens. O que sempre me interessou em seus trabalhos é seu domínio técnico/formal, aliado a um humor peculiar que dá o tom de grande parte de sua produção. Esse humor, no entanto, não quer dizer que suas produções sejam engraçadas. O humor em sua produção se demonstra em como o artista consegue introduzir nas articulações dos campos cromáticos que inventa, certas anotações ou conjunções inesperadas, repletas de ironia, que tiram nosso olhar da mesmice, embora o artista lide justamente com ela.
Pois bem: nesses meses de pandemia, Alfredo convidou alguns amigos (eu, entre eles) a acompanhar a produção de algumas de suas pinturas. Promoveu encontros em seu ateliê de Porto Alegre? Claro que não. Mesmo que alguns dos convidados residam naquela cidade, a maioria (como Alfredo) pertence ao grupo de risco e, assim sendo, respeitam o “novo normal”, que é o distanciamento social. Por isso o acompanhamento do seu processo de produção tem se dado via WhatsApp, na sala “Alfredo em processo”.
Somos de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo e nos dividimos entre críticos, artistas e historiadores que se encontram virtualmente nessa sala, desde abril. Alfredo apresenta a fotografia de uma pintura apenas iniciada, fala o que pretende ou o que não pretende fazer dali para a frente, e os amigos vão emitindo suas opiniões ou meros palpites, não importa. Às vezes me pergunto quando, numa situação “normal”, e sem o auxílio da tecnologia, seria possível desenvolver um trabalho de encontros quase diários, reunindo profissionais de várias cidades.
Um dos interesses dessa sala é que nem sempre (ou quase nunca) todos os participantes estão online ao mesmo tempo. Às vezes ocorre que, além de Alfredo, estejam ali apenas mais um ou dois amigos entretidos numa conversa que tende a ser rápida, com as observações sempre respondidas com presteza por Alfredo. Nessas ocasiões é que se percebe que o humor não é um elemento presente apenas em sua produção e sim um dado estrutural de sua personalidade, demonstrando o quanto é difícil, muitas vezes, separar o criador da criatura. Porém essas opiniões emitidas e discutidas no calor da hora não se perdem ao término das discussões mais ou menos acaloradas. Pelo contrário, elas ficam ali registradas e passíveis, portanto, de serem respondidas/desenvolvidas mais tarde por outros participantes, suscitando outra etapa de discussão.
Se formos reler os registros daquelas mensagens – sempre ao lado das imagens que as suscitaram –, veremos que as opiniões dos diversos membros sobre a produção de Nicolaiewisky (ao lado das respostas do artista) vão sendo depositadas e, em alguns casos, devidamente soterradas pela falta de interesse ou importância; em outros casos, no entanto, elas são retiradas do interior dos registros, recuperadas e retrabalhadas a partir de novos significados que lhes são conferidos.
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Desde o início tenho sido um entusiasmado participante de “Alfredo em processo”. Fico mobilizado para discutir as idas e vindas da produção dessas pinturas de Alfredo porque renovadamente me surpreendo com sua capacidade em articular os campos visuais que cria e estrutura para além, tanto do sentido tradicional da pintura como “composição”, e mesmo como “preenchimento de campo”. Alfredo, pelo menos em parte dessa sua produção mais recente, parece reinventar a dimensão modular da pintura e é exatamente essa sua capacidade que me excita, que me faz querer acompanhar seu processo para poder entende-lo melhor e melhor me entender frente às suas várias etapas de realização.
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Saio desses encontros sempre com um sorriso nos lábios (porque a turma se diverte muito durante as trocas de mensagens). E fico pensando como esse horror que estamos vivendo com a pandemia – agravado por esse governo que é uma vergonha –, tem proporcionado situações gratificantes que jamais teriam ocorrido se estivéssemos vivendo na antiga “normalidade”. Ou alguém acredita que antes da pandemia teríamos tempo de nos reunirmos tantas vezes para discutirmos a produção de um artista, trocarmos impressões sobre arte, pensarmos não o “ato de criação” – uma ficção romântica, diga-se –, mas o processo de criação?
Essa experiência com Alfredo Nicolaiewsky e os outros colegas gaúchos e cariocas me fez atentar para algumas questões. A começar, me ensinou que o nervosismo que a arte de verdade provoca pode ser experimentado também enquanto ela se processa (isso quando ela for boa de verdade, quando diz a que veio desde os primeiros elementos que irão constitui-la). Por outro lado, como no caso de Berti, Julio e Carmela, a produção artística é boa quando, acima e antes de tudo, diz respeito a si mesma. O resto é literatura – questão fundamental a não se esquecer nesses tempos em que a retórica impera sobre a forma.