A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

A curadora-chefe do MuBE Galciani Neves. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

A primeira exposição curada por Galciani Neves no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE) não foi pensada para ser vista pelos visitantes do museu paulistano. Tampouco foi criada direcionada ao ambiente virtual, como se tornou comum nos últimos tempos. Aberta no dia 5 de setembro, dois meses após Galciani assumir o cargo de curadora-chefe da instituição, O ar que nos une é direcionada aos pedestres, usuários de ônibus e motoristas que passam pela avenida Europa, na zona oeste de São Paulo, já que a instituição segue de portas fechadas em meio à pandemia de Covid-19. E, seja neste desejo de diálogo com a cidade, seja nas temáticas que levanta, a exposição já dá uma mostra de algumas das preocupações que devem pautar a gestão da nova curadora do museu.

“Convidamos artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta e da forma como a gente se comporta”, explica Neves em entrevista à arte!brasileiros. Questões referentes à destruição do meio ambiente, ao Antropoceno, à causa indígena e ao papel educativo da arte surgem, de diferentes modos, nas obras de Ana Teixeira, Artur Lescher, Laura Vinci, Motta & Lima, Paulo Bruscky e Yoko Ono.

Nascida em Fortaleza, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora na FAAP e na Universidade Federal do Ceará, Galciani assume o cargo após quatro anos de gestão de Cauê Alves, que recentemente se tornou curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Ela pretende dar sequência ao projeto de seu antecessor de construção de um acervo de “obras-projeto” – em que o artista disponibiliza ao museu o projeto da obra e a possibilidade de montá-la, mas não o trabalho em si – e afirma que suas prioridades são trazer maior diversidade para o museu e intensificar seu papel pedagógico.   

“Acho que deve ser ressaltada uma vontade de colocar a tarefa do museu na sua vocação como um lugar de educação. Meu maior desejo é esse. E quando digo educação é de uma maneira geral, entender a educação como uma prática de liberdade. Paulo Freire já dizia isso. Entender que o educar e o educar-se é um trânsito, uma ponte”, afirma. “Acho que o que a gente tem que fazer mesmo é abrir as portas do museu, fazer com que ele seja um espaço simpático e empático. Por isso é tão importante pensar nos processos educativos.”

Quanto às questões urgentes referentes ao meio ambiente, em um país que assiste à destruição acelerada de seus ecossistemas, Galciani fala de seu desejo de aproximar cientistas e pesquisadores do trabalho no MuBE e cita o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour: “Há cerca de um ano ele falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito”. Nesse contexto, segue ela, é preciso entender que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Leia abaixo a íntegra da entrevista.  

ARTE! – Você assumiu o cargo de curadora-chefe do MuBE em julho, ou seja, há pouco menos de 3 meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho e o que foi possível fazer até agora, especialmente considerando que você assumiu em meio à pandemia e com o museu de portas fechadas.

Bom, desde o começo sabíamos que o museu estaria de portas fechadas por tempo indefinido. Então o início foi de um entendimento da instituição, do que poderia ser a vocação do museu. Como você sabe, o Cauê Alves, junto com a nova diretoria, já havia reposicionado o museu de uma forma muito diferente do que ele havia sido nos últimos dez anos. Então de quatro anos para cá existe um acervo sendo montado, exposições com consistência foram feitas, há uma equipe de educativo, cursos de história da arte e de arquitetura que já estavam sendo ministrados. O MuBE realmente foi adensando a programação. Então o começo foi em parte reconhecer esse terreno, ainda que à distância. Isso é muito difícil, até porque o prédio é encantador, é muito bom estar ali, naquele espaço aberto, em contato com a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Realmente sinto falta deste convívio. 

E uma coisa que começamos a fazer foi intensificar a programação online, ver o que era possível produzir. Já existia uma programação chamada MuBE ao vivo – Conversa com Artista, e o que eu pude fazer de maneira um pouco mais profunda foi preparar séries para essa programação. Primeiro foi a série “hic et nunca: a cidade como espaço/tempo de experiências artísticas”. E nós convidamos cinco mulheres, cada semana uma artista brasileira: Regina Parra, Alice Shintani, Eleonora Fabião, Virginia de Medeiros e Abigail Campos Leal. E os debates foram super legais, com uma grande participação do público. Fizemos uma segunda série, que se chama “entre nós, uma ponte”, tentando montar diálogos entre arte e educação, com artistas cujos processos artísticos são indissociáveis de processos pedagógicos, como Jorgge Menna Barreto, Vânia Medeiros, Renata Felinto e Lia Rodrigues, entre outros. Agora estamos montando uma terceira série em que cada debate terá sempre um artista e um pesquisador/cientista discutindo as urgências do Antropoceno. Queremos colocar arte e ciência em diálogo.

Então essas atividades foram o foco principal. Além disso, o Educativo tem feito atividades que já existiam antes de eu entrar, como o “ateliê a distância”, geralmente mais voltadas ao público infantil. Tem também o “conhecendo o artista”, que é um video em que os educadores apresentam a produção de algum artista, em geral alguém que esteja na exposição que já estava montada – Obras-projeto: Novo Acervo do MuBE, que foi a última que o Cauê fez. E tem ainda o “conta o conto”. São as atividades online que pudemos fazer.           

Artur Lescher, Aerólito, 2003, na mostra “O ar que nos une”. Foto: Marcus Vinicius de Arruda Camargo

ARTE! – Vocês fizeram também a exposição O Ar que nos Une, já com sua curadoria, que não é uma mostra virtual. Poderia falar um pouco sobre ela?

Sim, foi o que conseguimos fazer, lembrando que a gente não abriu o museu para a exposição acontecer. Então ela foi feita na área externa para ser vista por quem passa na calçada, nos carros e ônibus. Ela parte do Conversa de Ar, da Yoko Ono, e a gente convidou artistas cujos trabalhos não exatamente tematizam a pandemia, mas de algum modo falam de uma espécie de conexão, do fato de que mesmo à distância as conexões e diálogos insistem em acontecer. Falam da forma como o planeta se comporta, e da forma como a gente se comporta, da maneira como o patrimônio cultural se constitui e se transmite.  

ARTE! – Em uma entrevista recente você falou sobre a proposta de trazer maior diversidade para o museu e de democratizar o acesso a ele. Você acha que essa mostra, ao se abrir para as ruas, já seria um passo neste sentido de desejo de maior integração com a cidade?

Acho que sim. E o desejo de integração eu acho que é algo de que vamos falar muito agora. Porque em tempos de isolamento o que a gente mais sonha é em ficar junto né? Isso se tornou muito caro para nós. Eu, antes de ser curadora, sou professora, então sinto muita falta da sala de aula. A gente sabe o quanto a experiência de aula é feita no convívio. E eu entendo também uma exposição como uma esfera pública de discussão.

Para mim, em primeiro lugar a vocação de um museu é a educação. E isso também tem a ver com o entorno mais imediato, com a cidade, com a rua, com o público. E quando penso em ampliação de público não estou falando apenas das pessoas que visitam o espaço, mas é super importante pensar no acesso aos meios de produção culturais, propondo uma possibilidade de trazer maior diversidade entre as pessoas que podem participar das exposições, palestras etc.

ARTE! – Poderia explicar um pouco melhor o que seria essa maior diversidade que você pretende trazer para o museu e de que modo isso pode ser feito na prática?

A gente já começou esse processo. Eu sei que a ideia de representatividade ainda é algo que a gente precisa ultrapassar. Quer dizer, precisamos sair da “síndrome de um negro só”, que é o que a gente vê na maioria dos espaços né? E eu não quero correr esse risco. Mas sei que pensar sobre isso é um trabalho fundamental, que tem que estar na pauta principal do MuBE. E temos que entender que uma exposição, uma curadoria, é um lugar de legitimação, e que a medida que uma curadoria olha, seleciona, legitima e coloca em exposição alguns trabalhos, ela também deixa de colocar outras coisas em circulação. Então eu acho que o trabalho parte principalmente de um processo de pesquisa, de diálogo, e aí sim de interlocução, de relação. Nós sabemos quantas iniciativas e plataformas de tentativas de mapeamento existem, por exemplo, de artistas negros, de profissionais e pesquisadores trans, mas talvez o grande desafio seja a nossa possibilidade de acessar e se comunicar com essas pessoas. E sendo franca, acho que ainda estamos engatinhando nesse sentido. O Brasil não se preparou para isso. Estamos muito acostumados a viver dialogando e expondo os grandes nomes, já hegemônicos e já cristalizados. E acho que é super importante ampliar os espaços, mas também ampliar a vista, entender uma diversidade de ação, de pontos de vista. E isso não deveria ser só uma plataforma de um museu, não teria que ser só a plataforma de arte, a gente tem que pensar em inclusão, que os meios de produção culturais tem que ser irrestritos para essas pessoas também.          

ARTE! – Você chegou já a citar essa proposta de trabalhar a ideia do Antropoceno, o que parece ter até uma relação com o nome do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia). O que significa trazer o debate sobre o Antropoceno para o museu, inclusive pensando no atual contexto brasileiro de destruição de suas florestas?

Nós estamos vivendo uma crise que é humanitária, sanitária, política… Enfim, tornou-se uma pauta que a gente encara todos os dias, isso está em nossos corpos, vinculado aos nossos deslocamentos, aos nossos privilégios de ir e vir. Então temos no museu um planejamento que está começando a ser desenhado para o ano que vem, no qual estamos conversando com muitos pesquisadores e cientistas para entender as pautas urgentes para 2021. Entender os temas que não podem faltar. Então essa série de conversas que eu citei, por exemplo, já é fruto de um diálogo inicial com algumas pessoas. O Bruno Latour, por exemplo, é um pensador que está aqui na minha mesa, literalmente, o Diante de Gaia está aqui comigo. E no Brasil estamos começando a conversar com o S.O.S Mata Atlântica, a Marcia Hirota tem nos nutrido de pessoas e pesquisadores jovens que trabalham com agrofloresta, com o impacto no ecossistema da cidade – inclusive para entendermos a cidade como meio ambiente. Isso está presente também na formação dos educadores. Estamos tentando fazer com eles uma formação bem diversa e plural, passando pelas ideias de patrimônio cultural e educação ambiental, para que a gente também comece a preparar o público interno para receber esses conteúdos. Outro conteúdo importante é sobre as mudanças climáticas, o que envolve um maior entendimento do próprio funcionamento do museu, um engajamento com o cotidiano da instituição. Existe, por exemplo, a Agenda 2030, com vários protocolos e instâncias de funcionamento, e estamos tentando posicionar o museu em relação a essas estratégias.

Acho que uma coisa importante que eu tenho começado a aprender com os pesquisadores é que nós vamos, cada vez mais, assistir o planeta falar por si só, reagir. A ciência moderna tratou, por muito tempo, o planeta como um lugar de recursos que nunca iam acabar, mais passivo, uma espécie de mãe que tudo aceita e tudo nutre, tudo dá. E acho que maior lição que tenho aprendido agora são as interconexões, tudo está imerso, o planeta vai começar a reagir de maneira mais brusca, digamos assim. E temos que pensar em como tratar esses temas.                

ARTE! – Este debate inclui também tratar de questões indígenas, por exemplo?

Sim, porque a gente também entende que os povos originários, assim como nós, somos parte do meio ambiente. Mas é também um assunto que tem uma delicadeza. Não podemos apenas estetizar, entender como uma espécie de produção excêntrica. Acho que temos que ter um cuidado para lidar com essas coisas, estamos aprendendo a pensar sobre isso. Não podemos cair em erros de museificar as coisas, mas precisamos entendê-las em um plano de ação do imediato, do contemporâneo, de conexão cultural mesmo. Talvez a gente ainda tenha que sofrer um pouco para trabalhar com esse tipo de assunto.

ARTE! – Pensando no momento político conturbado que estamos vivendo, mais especificamente no Brasil, temos um governo que parece tratar arte, cultura, educação e meio ambiente quase como áreas inimigas. Queria que você falasse um pouco sobre como vê este contexto, pensando que essa são exatamente as principais áreas de atuação do MuBE…

Há cerca de um ano o Bruno Latour falou em uma entrevista que finalmente o medo de perder o mundo não é mais só dos artistas e dos poetas. Eu fiquei muito chocada com isso. Então o medo de perder o mundo agora é amplo e irrestrito. E é uma ameaça que se edificou com mais força e potência na nossa frente. Mas, partindo disso, eu entendo a arte como uma atividade social, embrenhada no meio social, nas nossas questões políticas, no nosso exercício efetivo como gente, por mais óbvio que seja falar isso. Então nesse momento é entender mesmo que a tarefa da arte é de resistência, de questionamento. Acho ainda temos alguma esperança se entendermos que a vocação principal da arte é a educação, o que pode trazer mudanças para as próximas gerações. E especificamente no MuBE e na minha atividade como curadora e professora, eu estou pensando nas gerações futuras, no que realmente pode acontecer de transformação. Talvez não sobre muita coisa para as próximas gerações, mas temos que tentar semear uma base, um outro solo, nossa obrigação é muito grande. E nesse sentido a arte também tem essa tarefa de desobediência, também num nível de engajamento coletivo, e estar à frente do MuBE é pensar em trazer tudo isso para dentro, mas é sobretudo convocar e fazer circular, ser uma espécie de centro nevrálgico para algumas pessoas. Para que a gente possa produzir e fazer circular informações que sejam mais humanitárias, que de alguma maneira distribuam justiça, não num sentido demagógico, mas de alguma equidade social, de algum sonho de equidade social. 

ARTE! – Por fim, falando sobre o acervo do museu, você entra após um período de quatro anos em que o Cauê se dedicou à criação de um acervo de projetos de artistas. Isso seguirá neste próximo período?

O acervo do museu é feito de obras-projeto, o que significa que as ideias do artista estão ali sendo cuidadas pelo museu. O que significa também que nós temos a possibilidade de remontar essas obras. Então, por exemplo, se nós fizermos um empréstimo de uma obra do MuBE, nós enviamos o projeto e aí a outra instituição é responsável pela montagem. E os artistas são super parceiros nisso, porque não é apenas um croqui, mas todo um memorial descritivo dos trabalhos. Os artistas fizeram vídeos, estão em diálogo com a conservadora, que é a Flavia Vidal. E acho que o que o Cauê iniciou foi muito importante para reposicionar o museu, colocá-lo também como detentor de um acervo. E sim, já estou conversando com pessoas que terão projetos incorporados como parte do acervo do MuBE. Em breve poderemos anunciar quem são.

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