Por Mario Gioia
Com a abertura do Pavilhão das Culturas Brasileiras, em São Paulo, a recuperação das peças coletadas por Lina Bo Bardi na Bahia nos anos 1960, e reunidas novamente no Solar do Ferrão, em Salvador, e a visibilidade que o artista acreano Hélio Melo teve na 27a Bienal de São Paulo, a arte popular retoma um papel mais efetivo na cena das artes visuais do Brasil.
Para Roberto Rugiero, um dos mais prestigiados especialistas da área no País e dono da Galeria Brasiliana, encravada em um sobrado no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o momento não merece ser tão festejado. “Trabalhar com arte popular no Brasil ainda é muito instável. Já vivemos tempos bem piores, mas o mercado não é muito amplo e o preconceito existe. É como se fosse uma luta de classes. Parte da elite não consegue ver genialidade em autores populares”, afirma, com cautela, o marchand.
E gênios, para Rugiero, não faltam nesse campo. Ranchinho, Antonio Poteiro, José Antônio da Silva, GTO, Fernando Diniz, Agnaldo, Artur Pereira. Nomes conhecidos por poucos críticos, curadores e historiadores de arte, com obra extensa e que se abrem para múltiplas leituras e análises, ainda insuficientes na atual fase da arte brasileira. “Quando estudiosos do porte de Mário de Andrade insistiam na busca de uma identidade brasileira, havia uma análise mais próxima e detida da arte popular, por nomes como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, por exemplo. Hoje, existe um vácuo, desde que nos anos 1970, Nova York e o mercado internacional passaram a ser os únicos faróis da crítica”, diz Rugiero. “É a época da ‘globanalização’.”
Rugiero acredita que a terminologia “arte popular” é a mais adequada para englobar “a arte espontânea”. Mas é um segmento tão rico que não cabe em um nome só. No entanto, o galerista é contrário a qualificar artistas de cunho menos erudito de “arte naïf”. “É uma terminologia odiosa, um galicismo inclassificável. O nome surgiu apenas para qualificar uma arte água com açúcar, pretensamente ingênua. Serve apenas para ser vendida a gringos desavisados.”
O galerista e estudioso do gênero remonta ao Brasil Colônia para lembrar das origens da arte popular. “Até o século XIX, a arte brasileira por excelência é o Barroco, que perpassa diferentes épocas e cuja influência é sentida até hoje. Como a população letrada sempre foi minoria até o Brasil industrial – os grandes artistas de uma arte menos elitizada, em geral ligada à religiosidade, eram autodidatas e de origem mais humilde”, explica ele. “As peças barrocas ainda ficaram. Mas perdeu-se muita coisa e de qualidade, como a publicidade do comércio popular de cidades como Olinda. Não sobraram exemplares desse tipo de arte, até para compararmos com o que foi feito mais recentemente.” Para ele, a pintura de tom popular ainda é mais difícil de ser estudada historiograficamente e com variedade, porque é pouco valorizada e tem menos consumo nas regiões de origem. “A produção tridimensional é mais fácil de ser vendida. As pinturas, além da dificuldade em sua comercialização, necessitam de muito mais estudo e de vivência para uma real leitura. Por isso, muitos pintores ditos ingênuos não têm uma obra de qualidade, que acaba sendo incensada inicialmente, mas que não se sustenta mais em longo prazo.”Anos 1940
Depois da Missão de Pesquisas Folclóricas, empreendida por Mário de Andrade em regiões menos conhecidas do Norte e do Nordeste do País, em 1938, Rugiero observa que a década seguinte terá iniciativas que colocarão a arte popular novamente em destaque.
“José Claudino da Nóbrega (1909-1995) vai a Cuiabá e traz à tona o barroco de Cuiabá, que não era visto nem estudado àquela época. Depois, vai à região do São Francisco e descobre Mestre Guarany (1884-1985), um gênio da escultura, com suas carrancas. Na mesma década, Mestre Vitalino (1909-1963) também é descoberto em Caruaru por Augusto Rodrigues e vira uma celebridade, depois de matéria na revista O Cruzeiro. E, no interior de São Paulo, José Antônio da Silva (1909-1996) também tem sua obra reconhecida.” Segundo o galerista, os anos 60 serão outro tempo importante para a arte popular, em especial pela atuação de Lina Bo Bardi (1914-1992) à frente da criação de um museu popular no Solar do Unhão, em Salvador, fechado pelo regime militar e que hoje sedia o MAM baiano.
Para Rugiero, o marco mais recente da valorização da arte popular é a Mostra do Redescobrimento, ocorrida em 2000 e que, em segmento organizado por Emanoel Araújo, colocou em primeiro plano obras feitas por internos de estabelecimentos psiquiátricos, ex-votos e uma variedade de peças criadas em diversas fontes menos eruditas e que, por décadas, passaram à margem do sistema de arte. “O mercado despertou-se novamente para a arte popular”, considera ele.
O galerista acredita que artistas valorizados na cena contemporânea, como Efrain Almeida, já confirmado para a 29a Bienal de São Paulo, exposição que começa em setembro, e Farnese de Andrade (1926-1996), têm um forte lastro no popular, que faz com que a potência da sua obra seja mais perceptível. “E há casos mais antigos de artistas estabelecidos na história da arte brasileira, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, com forte influência dessa arte espontânea.”