A persistência das relações entre a arte, a natureza e a cidade encontra elementos simbólicos e narrativos na coletiva Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade, a 10ª Mostra 3M de Arte. Com curadoria bem conduzida por Camila Bechelany, as dez instalações inéditas, desenvolvidas por seis artistas convidados e quatro selecionados por edital, foram distribuídas pelo Parque Ibirapuera, colocando o visitante em estado de imersão progressiva em um campo de escuta e percepção. Um dos trunfos da coletiva foi situar as intervenções em um contexto de confronto e sentido com as diferentes correntes existentes nesta área. O campo expandido da imagem e do som se encontra no trabalho de Lenora de Barros, dentro do contexto da earcology, obra para se ouvir, com caixas de som perfiladas e drone falante que voa sobre cinco pontos do parque. Lenora criou um poema especial para esta obra: O QUE OUVE É JÁ/ONTEM É JÁ/ HOJE, AMANHÃ É JÁ. “Nas cinco diferentes leituras que faço no percurso das caixas de som, uso entonações e alturas diversas, busco gerar vários significados, focando na mensagem de que cada momento é resultado do anterior e o futuro é resultado do ontem, do agora, do momento-já”. O ponto de partida é a frase de John Cage: “O mundo se transforma em função do lugar onde fixamos a nossa atenção”, falada por ela e emitida pelo drone que dialoga com o poema O QUE OUVE. A palavra “já”, segundo Lenora, é o fio condutor da performance vocal e é repetida durante o trajeto, até se tornar um “som invertido” em que se ouve a frase “age já”. Lenora trabalhou com Cid Campos, músico e compositor, e juntos criaram uma obra sem recursos digitais, tendo só a voz da artista como matéria prima.
As instalações desaceleram e esticam o tempo. Camila Bechelany conduz a curadoria levando em conta que cada indivíduo é participante ativo e receptivo no meio urbano. “Nesse sentido, a questão do acesso à arte se torna imperativa e urgente diante da crescente exclusão social no mundo contemporâneo.” Lugar Comum é vivida como um ecossistema cultural com personagens já consagrados, outros menos, e há os emergentes em que ela apostou. Projeto compartilhado, traz a arte para dentro do fluxo cotidiano com a instalação Geografia, da série Unus Mundus de Cinthia Marcelle. Dezenas de metros de mangueira jogam água no lago, fazendo o caminho inverso do esperado. Inúmeras reflexões são suscitadas. Uma delas é dispor da água, elemento vital, como construção subjetiva do silêncio, dentro da narrativa da ecologia acústica. Marcelle reforça o pensamento de Argan: “A natureza é o material com que os homens fabricam o espaço”.
Também nesse sentido, Camila Sposati cria território singular com seu Teatro Parque Arqueológico, uma intervenção prospectiva que observa o Ibirapuera como território fundante, criando uma obra sonora, performática e de impermanência. Ela promove combinações entre as relações complexas que se sobrepõem em um mesmo ambiente com seus instrumentos-esculturas em cerâmica, inspirados em dois trabalhos anteriores – Teatro Anatômico da Terra e Phonosophia. Onde é o melhor lugar da palavra? O Púlpito Público, de Maré de Matos parece responder o óbvio ao discutir o espaço “palco” como um átrio onde a coletividade pode e deve ter voz. A frase “Viver é muito perigoso”, de João Guimarães Rosa, encontra seu equivalente em O Brilho da Liberdade Diante de seus Olhos e Alto Astral trabalho de Rafael RG inspirado na vida de Harriet Tubman, ativista norte-americana que em 1820 salvou dezenas de escravos, como ela, traçando uma rota de fuga a partir da observação da constelação Estrela Norte. A carta celeste foi produzida no parque em backlight, como processo de compreensão das esferas de energia luminosa. A história de Harriet virou filme e, em homenagem ímpar, seu rosto foi estampado na nota de 20 dólares.
O trabalho de Luiza Crosman é de hipóteses, O Mundo Versus o Planeta tangencia as distintas funções da ciência, propõe o entendimento sobre a diferenciação entre terra e planeta e a observação entre a arte e a ciência. Os temas de renovação estética e política materializam o presente revisitando o passado com questões como gentrificação e apagamento. O assunto é o gatilho da intervenção Entre o Mundo e Eu – A Caminho de Casa, de Diran Castro, que tem amigo cujos parentes humildes moravam no terreno do Ibirapuera antes da construção do parque para os festejos do quarto centenário de São Paulo, em 1954. A artista estuda temas da decolonização e sua instalação, uma cidade em escala reduzida, foi feita com desobediência estética e civil como alerta à gentrificação generalizada.
O distanciamento generoso entre as instalações cria pontes para experiências perceptivas, especialmente as soundscapes ligadas à ecologia acústica, teorizada por Murray Schafer, músico e ambientalista canadense. O hibridismo entre som, imagem e tempo norteia a instalação Objeto Horizonte, do Coletivo Foi à Feira, composto por Clarissa Ximenes, Gabriel Tye, Luís Felipe Porto, Matheus Romanelli e Raysa Mucunã. Uma esfera transparente de autorreflexão convida o visitante a gravar um áudio com mensagem sobre a cidade do futuro, que é enviado a um receptor que transforma as vozes em inserções aleatórias, como uma máquina do tempo. Fazendo uso de elementos primordiais à sobrevivência, vários artistas se dedicam à agro arte realizando intervenções gigantescas (land art) ou reduzidas como o Canteiro Suspenso, de Narcíso Rosário, um conjunto de caixas sobre cavaletes onde o vegetal faz parte de um acervo sensorial e orgânico. A arte é um fermento de combustão imediata e de energia criativa. Ao criar uma padaria no parque, a dupla Gabriel Scapinnelli e Otávio Monteiro atraiu o observador-performer introduzindo-o na arte de fazer o pão, criando assim um sistema que se inicia na arte e termina no que Joseph Beuys definiu como escultura social. Lugar Comum: travessias e coletividades na cidade contribui para uma reflexão crítica sobre o lugar da arte na esfera pública de uma cidade.