*Por Ana Letícia Fialho e Luciara Ribeiro
O resultado das últimas eleições, tanto no Brasil como nos EUA, foi marcado por presenças que, de alguma maneira, apontam um desdobramento dos atos antirracistas que cresceram no mundo a partir do mês de julho, quando o assassinato do afro-estadunidense George Floyd e o movimento Black lives matter mobilizou multidões de pessoas pelo mundo. Foi neste período também que, em meio a crise pandêmica da Covid-19, esse debate cresceu dentro do sistema das artes brasileiro, adentrando o espaço das instituições e exigindo posicionamentos e ações mais assertivos. De lá pra cá vimos o aumento de discussões que pautaram o revisionismo crítico dos museus, acervos e políticas de aquisição; a contratação de mais profissionais negros, indígenas e trans para cargos de coordenação, curadoria e gestão; abordagens em torno das linguagens e metodologias adotadas pela academia e as mídias artísticas, entre outras. Apesar do empenho de diversos agentes e da maior visibilidade alcançada por tais questões, poucas foram as alterações efetivas concretizadas.
Embora possamos nos deixar embalar por exemplos positivos que vêm se multiplicando, cabe destacar aqui pesquisas que evidenciam o longo caminho ainda a ser percorrido. Os primeiros resultados do Mapeamento de curadores negros, negras e indígenas, realizado de modo colaborativo através das redes sociais com a coordenação de Luciara Ribeiro e divulgado em parceria com o Projeto Afro e o Coletivo Trabalhadores de Arte, demonstra que mesmo com o aumento das contratações de curadores não brancos e com a abertura de exposições que contam com a participação desses profissionais, dos 76 curadores negros e dos 20 indígenas listados, 80% deles atuam de maneira independente/autonoma, sem vínculos efetivos com as instituições museais, artísticas e culturais. Sem desconsiderar as escolhas pessoais de cada um, esse dado revela baixa taxa de empregabilidade formal dos curadores negros e indígenas.
A MUNA, Mulheres Negras nas Artes, fundada por Fabíola Rodrigues e Mariana de Matos, lançou em 2017 uma pesquisa precursora em evidenciar a grande desigualdade de raça e gênero existente no sistema das artes no Brasil. Os resultados, divulgados na página da MUNA no Facebook, informam que nas 30ª, 31ª e 32ª Bienais de São Paulo, por exemplo, participaram 390 artistas, entre os quais 45 mulheres, das quais apenas quatro artistas negras. A pesquisa também levantou números do mercado de arte: uma amostra de 5 galerias do Sudeste (A Gentil Carioca, Celma Albuquerque, Mendes Wood DM, Nara Roesler e Vermelho) computava um total de 160 artistas representados, entre os quais 56 eram mulheres e apenas 1 artista negra.
Uma pesquisa mais recente, desenvolvida pelo artista, curador e pesquisador Alan Ariê, em 2019, mapeou as diferenças de gênero, raça e local de nascimento de 619 artistas representados por 24 galerias da cidade de São Paulo, e foi divulgada através de um perfil criado nas redes sociais, o Negrestudo. Um dado que diz muito sobre a reatividade do mercado de arte em tratar do tema foi a recusa expressa de algumas galerias contatadas em participar do levantamento. Quando da divulgação dos resultados, algumas das galerias marcadas nas redes sociais se desmascaram, evidenciando incômodo com o tema e os resultados, que apontam, por exemplo, que entre os “619 nomes levantados pela pesquisa, apenas 46 pessoas não são brancas. Destas, 27 são pessoas negras – 23 homens e apenas 4 mulheres; 14 são pessoas asiáticas – 9 homens e 5 mulheres; 4 são pardas – todos homens; e apenas 1 pessoa é indígena.”
Diante disso, não podemos fechar o ano de 2020 sem reforçar a importância de que esses debates sejam permanentes nas artes, assim como compromisso na construção de um sistema mais democrático e para todos. Se no plano institucional e curatorial esse debate já vinha ocorrendo há bastante tempo e se tornado mais recorrente e consistente nos últimos anos, no mercado de arte o fenômeno parece ser bem mais recente e ainda bastante embrionário no Brasil. Não obstante, embora possam ter temporalidades distintas, tendências observadas no campo institucional e no mercado não devem ser dissociadas, afinal, o sistema da arte é composto por instâncias distintas mas interdependentes, todas sujeitas a macrodeterminantes, como os movimentos sociais e o contexto pandêmico, que têm impulsionado e mesmo acelerado mudanças no setor.
Nesse sentido, vimos algumas ações ocorridas neste ano que merecem destaque. A p.art.ilha, que surgiu como um coletivo de galerias para pensar em estratégias coletivas e compartilhadas de âmbito comercial e institucional, hoje reúne cerca de 40 galerias de distintas localidades e propostas curatoriais. Além das ações pensadas para a atuação externa, são recorrentes discussões e contribuições colaborativas (crowdsourcing) para organização interna desse setor. Como exemplos podemos citar a criação de uma listagem unificada de curadores e suas linhas de pesquisa, uma planilha conjunta de prestadores de serviço e indicações de transportadoras e a possibilidade de dividir e planejar custos em traslados de obras para o mesmo destino, que têm sido frequentes e proveitosas em termos de custo, tempo e facilidade.
Outros setores dentro do circuito da arte se fortaleceram através da auto-organização; é o caso da Art Handler Brasil, que foi criada a partir da necessidade de ações emergenciais para auxiliar os montadores de exposições de arte, e que inclusive foi uma das beneficiadas pelas primeiras ações coordenadas das galerias da p.art.ilha.
Demandas político-sociais têm também instigado a criação de novas galerias já alicerçadas em prerrogativas mais inclusivas. Pioneira nesse quesito, a Diáspora Galeria, lançada em 2019, que também participa da p.art.ilha, enxerga o diálogo com o setor e as outras galerias e agentes culturais como um caminho necessário e incontornável para expandir a presença das pautas sociais dentro do sistema da arte. Yvette Mutumba, fundadora da revista Contemporary&, em uma matéria para a ArtForum, citou a galeria como um dos dez projetos de destaque para seu ano, o que apenas reforça a importância política de novas galerias para renovar o mercado.
A HOA, galeria de Igi Ayedun, também precisa ser mencionada como uma boa novidade. Lançada neste ano de 2020, a galeria se define como uma organização de arte liderada por artistas, dedicada à arte contemporânea latino-americana, e visa romper a noção de atraso e dependência do sistema europeu e norte-americano nas artes. Em seu elenco, consta apenas artistas não brancos.
Essas movimentações também reverberaram nas edições anuais da SP-Arte, que ocorreu online durante o mês de agosto, e da ArtRio, que ocorreu presencialmente no mês de outubro. Ambas, possibilitam a entrada de projetos que não se configuram especificamente como galerias de arte, mas que abrem caminhos na criação de novos modelos para a circulação e comercialização das artes. Entre eles estão a Plataforma 0101, a Nacional Trovoa e a Piscina, que, além de surgirem como propostas de renovação para o mercado, possuem como base o fato de serem coletivos pautados em debates não hegemônicos, como o feminismo interseccional e as lutas antirracistas.
As edições Viewing Rooms da SP-Arte e SP-Foto demonstraram que com a virtualidade é possível alcançar não apenas outros públicos de compradores e galerias, mas democratizar o acesso à feira, e, em alguma medida, descentralizando-a do sudeste. Em live do dia 11 de agosto, no canal do instagram do Arte que Acontece, a diretora da feira, Fernanda Feitosa, comentou sobre o desejo de expandir a SP-Arte para outras regiões do país, descentralizando-a do eixo sudestino e contribuindo para outras noções da produção nacional. Promover o debate sobre a geopolítica das artes no campo nacional e internacional em uma feira com a projeção da SP-Arte se faz fundamental, visto que em sua estrutura ainda se mantém a presença majoritária de galerias dos eixos economicamente favorecidos. Talvez, entender a configuração das artes por via dos Sul-Sul’s geopolíticos possibilite a ampliação de perspectivas para as artes, tendo a inclusão das regiões do norte, nordeste e centro-oeste brasileiros, assim como Ásia, África e América Latina na mesma medida que as demais.
A ativação do virtual como espaço para a comercialização não foi utilizado apenas pelas feiras. Na busca de alternativas acessíveis, artistas se reuniram em coletivos para comercializar suas obras. Uma dessas experiências foi o Birico, uma plataforma digital organizada por 40 artistas de diversas regiões do país e com condições sociais diferentes, que vendem impressões gráficas de seus trabalhos com o intuito de gerar um fundo emergencial para seus participantes e para ações na Cracolândia, como uma “Residência Artística Social” oferecendo moradia e formação em diferentes áreas, podendo as produções realizadas serem comercializadas e contribuírem na geração de renda.
Não há uma previsão segura sobre quando as atividades do mercado de arte, fortemente ancorado em relações pessoais e atividades presenciais, poderão se restabelecer plenamente. Mudanças significativas estão em curso, relacionadas à forma de produção, exibição, circulação e consumo de arte, exigindo adaptações e transformações dos modelos de negócios, onde as estratégias digitais assumem uma relevância inédita. Dessa capacidade de reinvenção e de ação dependem a sustentabilidade e mesmo a sobrevivência de empresas e agentes que atuam no mercado de arte, enquanto a pandemia durar, e também a recuperação do setor num cenário pós-pandêmico no qual o contexto econômico mais amplo seguirá bastante adverso. Acreditamos que uma das mais relevantes e positivas transformações em curso se dá na direção de um sistema das artes mais diverso, includente e colaborativo. Iniciativas como p.art.ilha, Diáspora, Birico e todas as demais citadas, já estão apontando para esses novos caminhos.