A presença generalizada da palavra no mundo das coisas, tão evidente e tão pouco retratada, é o mote da mostra Língua Solta, instalada no Museu da Língua Portuguesa (MLP) até o próximo mês de outubro. Mesclando propositalmente categorias estanques, como alta cultura e cultura popular, arte contemporânea e cultura de massas, a exposição combina num mesmo espaço e de forma não ordenada um conjunto amplo e significativo de obras de arte contemporâneas – já referendadas pelo mercado e pelo circuito – e uma vasta seleção de objetos, cartazes, embalagens, faixas comerciais ou de protesto e outros elementos da vida cotidiana. Em ambos, o foco está na língua potencializada enquanto signo. “Olhando para o entorno, procuramos reconhecer que é a língua que anima muitos dos objetos ao nosso redor”, descreve Moacir dos Anjos, que assina a curadoria juntamente com Fabiana Moraes.
Não há na seleção feita pela dupla nenhuma pretensão universalizante ou enciclopédica. Afinal, como diz Moacir, “a curadoria é sempre um recorte do mundo”. As escolhas derivam das experiências – objetivas e subjetivas – da dupla no campo da arte e da cultura. O resultado é uma mostra em que a palavra parece ricochetear, indicando diferentes caminhos de apreensão do mundo. Um dos aspectos mais evidentes é a presença clara de um discurso de reivindicação política. “São palavras que expressam desejos, identidades, queixas”, explica Fabiana, enfatizando que não há na exposição nenhum tipo de hierarquização entre uma linguagem voltada ao entretenimento, a sugestão política ou a elucubração poética. Muitas vezes o espectador é colocado diante de manifestos que expressam a urgência dos dias atuais. Há, por exemplo, um conjunto de cartas e desenhos enviados por crianças moradoras da Maré ao Tribunal, com reações à repressão policial. Ou placa em homenagem a vereadora Marielle Franco, cujo assassinato segue impune. “São como gritos”, explica Fabiana.
Mesmo não linear e organizada de forma a promover faíscas entre diferentes formas de lidar com ideias, formas e palavras, a exposição se articula em torno de seis núcleos principais: mídia, resistência, casa, rua, religiosidade e pedagogia são as palavras em torno das quais se aglutinam os vários objetos. Muitos dos trabalhos selecionados pertencem, simultaneamente, a várias dessas categorias. E estabelecem entre si diálogos enriquecedores. Há, por exemplo, uma interessante reverberação entre os slides usados por Paulo Freire nos anos 1960 para alfabetização e a obra ABC da Cana, de Jonathas de Andrade, ou ainda a pintura Esperança, de Leonilson, que também usa o alfabeto como matéria-prima.
A palavra, onipresente, às vezes cede lugar para aproximações poéticas menos explícitas. É o caso do conjunto formado pelas obras de Lygia Pape, Lenora de Barros, Lia Chaia e Anna Maria Maiolino, no qual o foco se desloca do símbolo escrito para a fisicalidade da língua. A ideia de corte, mácula ou impossibilidade de controle da própria língua, algo comum ao trabalho dessas artistas, torna a aproximação entre elas muito potente.
É grande a lista de artistas representados na exposição, com raríssimas e propositais lacunas, como no caso dos poetas paulistas ligados ao concretismo. “Procuramos evitar um caráter literário, privilegiando a presença da palavra poética no campo artístico”, explica Moacir. Deixando de lado essas exceções, os grandes mestres da arte que se apropriam da palavra estão lá. Autores como Arthur Bispo do Rosário, Mira Schendel, Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Antonio Manuel, Leonilson, Élida Tessler, Vânia Mignone, Marilá Dardot, Ivan Grilo, Jaime Lauriano, dentre outros, comparecem, muitas vezes com mais de um trabalho.
Há um esforço permanente, em termos de montagem, de desfazer categorias, de demonstrar que a expressão artística deriva muitas vezes de um olhar atento ao mundo da rua e das coisas, sejam estandartes de maracatu, panos de prato, rótulos de cachaça ou assinaturas de pixo. Um exemplo claro desse hibridismo é o trabalho Você me dá sua palavra?, de Elida Tessler, que promove uma costura por toda a exposição. Por todo o espaço ziguezagueam, sustentados por cordas de secar roupa, milhares de pregadores suspensos. Sobre eles, uma série de pessoas convidadas pela artista escreveu uma palavra que lhe fosse especial. Em apresentação feita por ocasião do dia internacional da língua portuguesa, Tom Zé revelou a sua: “Desobediência”.
Originalmente, a mostra Língua Solta foi pensada como mais um núcleo das atividades permanentes do museu. Mas as dificuldades decorrentes da pandemia, a ausência de condições técnicas na instituição – que não possui nenhum acervo de obras de arte, portanto não conta com equipamentos como reserva técnica, equipe de conservação etc. – e a presença ampla de obras cedidas em empréstimo por coleções particulares e públicas fez com que a seleção passasse a ser exibida em caráter temporário. Em contrapartida, ganhou um espaço três vezes superior ao previsto anteriormente. É a única atividade do MLP que já pode ser vista pelo público e fica acessível a grupos específicos e mediante agendamento, até o final do mês de junho, para reabrir, junto com todo o museu, a partir do final de julho.