A morte prematura de Carlito Carvalhosa no último mês de maio, aos 59 anos, despertou um forte sentimento de tristeza e impotência, expresso de maneira contundente nas redes sociais de admiradores, artistas, críticos, colecionadores, marchands e todas essas categorias que compõem o difuso grupo conhecido como “circuito das artes”. A impossibilidade de realizar uma cerimônia de despedida e elaborar coletivamente o luto somou-se ao sentimento de desesperança vivido no país em consequência da tragédia sanitária, social e política em que estamos mergulhados. É sabido que o artista não morreu de Covid-19 e que há muitos anos lutava contra o câncer, mas restou uma sensação de que perdas como essa resumem o esgarçamento e a destruição de um projeto civilizatório no qual a arte desempenharia um papel fundamental. Objeto de intensas manifestações de afeto e admiração, Carlito e sua obra acabaram por corporificar essa noção de arte como elemento de reflexão e transformação, hoje tão violentamente ameaçada.
Se há algo que caracteriza de forma mais geral a obra do artista é seu desejo de atuar nas fronteiras perceptivas, transformando nossa apreensão de mundo e reafirmando o caráter transitório das coisas. Sua carreira começa na década de 1980, vinculada a um projeto de viés coletivo, junto a um grupo que incluía Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade. O grupo, conhecido como Casa 7 (referência ao número do ateliê que dividiam), partilhava interesses comuns como a ligação com o neo-expressionismo e o uso de materiais pouco nobres como o papel Kraft e a tinta industrial. As experiências iniciais de Carlito com o desenho e a pintura pouco a pouco foram dando espaço também para pesquisas de cunho mais escultórico, para um interesse crescente pela ocupação do entorno. Ele passa a explorar o ambiente, incorporando elementos simples e brutos, mas de forte carga simbólica, como a luz, os tecidos translúcidos, a madeira e o gesso, materiais que passaram a ser frequentes em sua produção.
“Quis dar um nó nesse espaço”, confessou ele ao longo da montagem de sua primeira grande instalação site specific, realizada no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em 1999. Nesse trabalho, intitulado Duas Águas, Carlito literalmente transferiu seu ateliê para o museu e travou um embate com a arquitetura rigorosa e retilínea de Paulo Mendes da Rocha (outra grande perda das últimas semanas), criando in loco uma série de monumentais estruturas em gesso, com formas orgânicas, que invertiam a noção de interior e exterior. De aparência leve, mas pesando oito toneladas, essas peças mantinham aquele aspecto paradoxal, indevassável, que o artista dizia buscar em seu trabalho.
Essa obra inaugura uma série de diálogos travados por ele com ambientes museológicos de grande importância institucional e arquitetônica, considerados como marcos tanto em sua produção como na importância crescente das grandes instalações na arte contemporânea brasileira. É o caso, por exemplo, da mostra Sala de Espera, que inaugurou no ano de 2013 o anexo da nova sede do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP), das instalações A Soma dos Dias, com versões similares apresentadas no octógono da Pinacoteca do Estado (2010) e no Museu de Arte Moderna de Nova York (2011), ou ainda da monumental escultura Já estava assim quando cheguei. A peça, exibida originalmente no MAM Rio em mostra temporária realizada em 2006 e posteriormente incorporada pelo acervo do Sesc Guarulhos, remete à imagem do Pão de Açúcar às avessas, uma montanha volumosa que flutua invertida no ar, provocando o visitante com seu caráter instável e precário. Um aspecto secundário, porém instigante, no trabalho de Carlito é a atenção que ele dá à palavra. Seus títulos trazem sempre uma dimensão poética, uma sugestão temporal ou narrativa que adere ao trabalho, somando-se ao aspecto formal e gerando outra camada de significados.
Há em comum em todos esses projetos, que jogam com luz, equilíbrio, volume, profundidade e transparência, um desejo permanente de transformar sutilmente nossa apreensão daquilo que nos cerca. Ao acionar esses espaços por meio de pequenas intervenções (como quando ergueu os heráldicos móveis da Fundação Eva Klabin, colocando sob eles frágeis copos de vidro) ou de ações de maior impacto visual ou sensorial (como as grandes espirais de tecido translúcido que compõem a cena em Soma dos Dias), cria uma espécie de lugar fora do tempo, em que as sensações de pertencimento e ausência se sobrepõem. Algo que Lorenzo Mammì definiu como um “não lugar”. Ou, nas palavras de Marta Mestre, uma situação que é extremamente ambígua, “porque vacila permanentemente entre contemplação e experiência, entre distância e aproximação, entre óptico e háptico”. Em outras palavras, a obra de Carlito Carvalhosa vai além de desafiar o espectador com instigantes provocações temporais e espaciais. Ao longo de mais de três décadas, ele problematiza a relação entre a obra de arte e o público, incorporando-se à melhor tradição da arte contemporânea brasileira.