*Por Mateus Nunes
Com um laborioso processo, Luiz Braga consegue criar uma atmosfera, o palco de um romance imagético. As narrativas que entrelaçam os bastidores de suas fotografias, com o contato constante que o artista belenense tem com seus retratados ao longo dos anos, preenchem esse espaço denso de matéria indócil entre o retratado, o fotógrafo e o observador da obra. Umberto Eco compartilhava que o mais árduo a se fazer quando da decisão de escrever um romance é precisamente criar uma atmosfera. Pensar o número de degraus das escadas das palafitas, as cores das letras abertas nos barcos, a curvatura das redes abertas, mesmo que vazias. Com a atmosfera constituída, não é mais tudo controlado pelo autor: as personagens e as palavras – no caso de Luiz Braga, as imagens – surgem por conta própria, em seu próprio ritmo. Após o dispendioso trabalho de domar as cores e as luzes, o fotógrafo fada-se a abrir-se ao acaso, ao diálogo. Ativamente espera e flana, e, com um conta-gotas, é agraciado com suas personagens ao longo de quatro décadas, que encontra e reencontra no porto, no barco, na rua, no rio e em casa. À Espera de Rosa, à la Beckett: na obra de Luiz Braga, a persistência e a paciência andam de mãos dadas.
Nessa série de retratos em cor, reunidos pela primeira vez, o fotógrafo cria alegorias da vida cotidiana, onde o observador pode se identificar, no olhar do retratado, com figuras distantes de sua realidade. Dessa forma, transforma os retratados em ideia, em personagens idílicos, como as divindades da escultura tapajônica ou as gravuras bíblicas de Gustave Doré – traçando um caminho de matriz híbrida entre as tradições nativas e a cultura ocidental europeia. Ao ilustrar magicamente episódios do dia a dia, Luiz eleva a imagem dos seus retratados a um patamar imaterial, como se não pertencessem ao plano real – quase como visagens, entes fantasmagóricos da cultura paraense.
O projeto expográfico é consoante com os caminhos conceituais propostos e instigados pelas obras. Nele, as imagens elevam-se, numa espécie de suspensão ideológica, reafirmando que não estão nem afixadas na terra, nem alçadas aos céus, mas habitam esse campo fantasmagórico das imagens, num eterno “entre”: as noções de material e imaterial, realidade e ficção, materialidade e abstracionismo são desafiadas, negando os dualismos convencionais e transpassando-as como um dardo no exato momento em que rasga o véu – o clique fotográfico. O espaço da exposição é pensado de forma que o espectador veja uma imagem de cada vez, paulatinamente, construindo um labirinto de planos de madeira em que as fotografias são afixadas, que se assemelha à percepção labiríntica da floresta. Como a folhear um livro, vê-se uma imagem a cada vez, e isso não só basta como transborda: em cada uma há um universo. Ao adentrar a exposição, vislumbramos o sentimento do fotógrafo ao se abrir ao acaso da vida, à surpresa dos encontros, abertos à possibilidade de sermos arrebatados por uma imagem à próxima curva.
O paralelismo à exposição de Pierre Verger, simultânea e vizinha à exposição de Luiz Braga, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, é assertivamente traçado pelos textos curatoriais de Paulo Miyada e Priscyla Gomes que narram a história de dois viajantes. Braga, o teimoso e curioso que busca viajar dentro de si, de sua terra e sua cultura; e Verger, o aventurista mundial ambicioso, digno de um romance de Jules Vernes. As analogias literárias poderiam seguir: o circum-navegador Phileas Fogg, protagonista de A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Vernes, é acompanhado por seu criado, chamado de Passepartout. Elemento caro à fotografia, o passepartout, homônimo ao personagem, é algo que não é inerente à obra, mas também não está fora dela em determinados contextos: habita, novamente, esse misterioso “entre”.
Intitulada Máscara, espelho e escudo, a exposição é batizada a partir de três signos de alto simbolismo que são análogos ao processo fotográfico do artista, como o próprio escreveu. Há, entretanto, uma forte carga híbrida vinda da matriz transcultural paraense que também pode ser relacionada a esses três símbolos.
As máscaras, caras à ritualística indígena, também foram hibridizadas – quando da recepção de tradições europeias trazidas pelos missionários católicos – pelos índios colonizados na Amazônia, que pintavam os admiráveis mascarões nos forros das igrejas em que se tornaram devotos. Nessas expressões artísticas, percebem-se diversas marcas de tradição indígena feitas por mãos nativas, pintadas com tintas da terra e tintas do reino. Essa força não era algo que podia ser domado pelos padres.
Do mesmo modo, instrumento de encantamento, o espelho acompanha as usuais narrativas de sedução por parte dos europeus na invasão do Brasil, utilizando-o como arma colonizatória camuflada de presente. No universo criado por Luiz Braga, essa mesma fascinação narcísica de quem se olha no reflexo da água ou do metal é presente nas casas interioranas, em espelhos defronte aos quais seus moradores se vestem com as melhores roupas e meticulosamente se penteiam para as festividades, eventos de alegria que Braga escolhe perpetuar.
Seu escudo, frágil e controverso, de nada o protege senão de si mesmo, pois carrega um alvo em seu centro, como a dizer “atire!”. Dessa forma, o olhar do retratado o atinge, subvertendo o escudo como instrumento de proteção e o transformando em um peito aberto à vida, ao acaso. Às vezes, o momento da decisão de fisgar a imagem não parece ser do fotógrafo, mas sim do retratado. Nesse instante, tudo clica.
A exposição reitera a efervescente pluralidade cultural da região paraense, chamando a atenção para as desigualdades políticas existentes e para os estigmas estéticos que erroneamente são atrelados à sua heterogênea produção artística. Ao caírem as máscaras, ao ruírem os espelhos e ao fenderem-se os escudos, parece que uma flecha atravessa o plano da fotografia e lacera os retratados. Essa incisão nos corpos das imagens de Luiz Braga contestaria sua esperada visceralidade dionisíaca e atestaria sua abrupta fabulação apolínea: cortaria uma ferida aberta de cor onde se esperava carne, irrompendo luz de onde se esperava sangue.