Em Ocupar os memes é preciso, a pesquisadora Giselle Beiguelman retoma a origem da palavra, traçando-a para um tempo anterior à internet. O nome que utilizamos hoje foi cunhado pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em 1976, no livro O gene egoísta. Na teoria de Dawkins, como resume Beiguelman, “o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica”.
Desvinculando-se de sua origem, e de volta ao “futuro”, o meme como compreendemos começa a aparecer na década de 2000 e alastra-se com o compartilhamento via redes sociais. Longe de estarem restritos à cultura pop, os memes foram enraizados para outros campos, como a política, e vão sendo operados aos poucos pela publicidade.
Sem aprisioná-los em uma definição categórica, Beiguelman aponta para a sua composição frequente: “Apresentam um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos encadeiam-se para produzir um terceiro sentido”. No Instagram, em específico, acrescenta-se ainda um terceiro elemento visual localizado num certo “entre” – nem completamente dentro ou fora da postagem – que é a localização da foto. “De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado pela artista e ensaísta alemã Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes”, ela adiciona. O perfil brasileiro New Memeseum vai ao encontro disso quando indica que os memes possivelmente ajudam a formular narrativas diferentes das hegemônicas. “Quem sabe, matizá-las… mostrar seus desdobramentos, contradições e oposições”. Para eles – cujas identidades são preservadas em anonimato -, o poder dos memes reside em seu caráter ficcional. “Parafraseando Karl Ove Knausgård, talvez nós estejamos tentando combater ficção com ficção”. No final do segundo volume da série Minha Luta, do escritor norueguês, lê-se – e o New Memeseum cita: “Havia uma crise, eu sentia em cada parte do meu corpo, algo saturado, como banha de porco, se espalhava em nossa consciência, porque o cerne de toda essa ficção, verdadeiro ou não, era a semelhança, e o fato de que a distância mantida em relação à realidade era constante. Ou seja, a consciência via sempre o mesmo. E esse mesmo, que era o mundo, estava sendo produzido em série”.
No que tange essa atividade de contraposto, Cem A. (também conhecido como @freeze_magazine, em paródia à revista de arte britânica) apresenta a possibilidade dos memes como agentes de mudança, embora não de forma revolucionária, mas reformista. “Os memes deveriam ser vistos como uma ferramenta para popularizar ideias progressistas. Sua popularidade pode nos dar vantagem na conversa”. O que surge como uma barreira para tal? A possibilidade deles serem absorvidos pelo mercado. “Se os memes fossem comercializados com uma abordagem imediatista, isso apenas os tornaria menos genuínos e eficientes. Até me faria questionar se eles poderiam ser considerados memes, no fim das contas”.
Quando o establishment começa a engolir memes (que até então resistiam a ele com críticas ácidas e bem-humoradas), eles perdem força (ao integrar o que uma vez enfrentaram)? Uma constatação importante é feita por Hilde Lynn Helphenstein, criadora do personagem virtual Jerry Gogosian (o nome alude a duas figuras reconhecidas no mundo da arte, o crítico Jerry Saltz e o mega galerista Larry Gagosian): “As maneiras como pretendo monetizar o que criei com @jerrygogosian, por exemplo, serão um meio de alcançar uma versão do mundo da arte com a qual posso conviver em uma microescala. [De todo modo,] minhas realizações artísticas serão perpetuadas pela máquina capitalista e não tenho nenhum problema com isso. Um artista tem que sonhar grande (e comer)”.
“Não temos certeza se a institucionalização dos memes pode causar algum impacto ou mudança para os criadores de conteúdo”, nota o New Memeseum ao considerar que, talvez, o impacto seja para as próprias instituições, que, “ao olhar com menor distinção entre alta e baixa cultura, estejam incorporando em suas programações linguagens que possam atrair novos públicos” – a exemplo da exposição Língua Solta, no Museu da Língua Portuguesa. Cavando mais fundo, eles questionam se a narrativa não pode ser contada de forma inversa: na perspectiva das redes sociais, pode ser que os museus e as galerias sejam os “espaços de exceção”, justamente porque a arte ainda é um tanto inacessível para a maioria da população. Ao que observam, as instituições têm procurado seu espaço na internet, têm investido e se preocupado com suas plataformas virtuais. “Existe um desejo de engajamento de públicos. A economia de likes também impactou as fontes de patrocínio – lembremos do edital cultural que, recentemente, assumiu como critério a soma do número de seguidores dos integrantes de cada projeto”, acrescentam. Com essas questões postas no horizonte, eles ressaltam que o New Memeseum (da mesma forma que Jerry e Freeze) é um perfil do Instagram e, como tal, funciona dentro de um aplicativo gerenciado por um conglomerado trilionário. “Nós também vivemos sob a regência de algoritmos.”
Sob tal regência, o humor é um formato eficaz para enfrentar os poderes estabelecidos?, pergunta Hilde, ao que ela mesma responde de modo negativo. “Ser o bobo da corte que declara o óbvio aos palacianos na presença do rei ainda é estar em dívida com o rei. O humor é um remédio que alivia temporariamente a dor de quem não está no poder e cria a ilusão de retomar o controle. Tirar dinheiro dos poderes instituídos e redistribuir a riqueza é provavelmente a única maneira de ‘ganhar’ no estágio avançado do capitalismo… mas é bom rir, esteja você ganhando ou perdendo”.
Em O valor do riso, Virginia Woolf afirma que ele preserva nosso senso de proporção, lembra o New Memeseum. Nas palavras de Woolf: “Felizmente os cães não podem rir, porque eles mesmos se dariam conta, se pudessem, das terríveis limitações de ser um cão. Homens e mulheres estão na devida altura, na escala da civilização, para que, tendo recebido o poder de conhecer as próprias falhas, fossem agraciados com o dom de rir delas”. Nesse mesmo texto, ao nos lembrar da importância da proporção, a escritora britânica acaba fazendo menção também à inexistência de um “herói completo”, aquele que precisa de um pedestal, estar no pináculo. Parece uma pretensa figura familiar no mundo das artes? Tais personagens, não raramente, compõem o elenco dessa peça memética. Com isso é possível descê-los do palco? “Não sabemos se a sátira das instituições e de seus personagens pelos memes relacionados às artes tornam esses mesmos personagens/elementos mais acessíveis”, confessa o New Memeseum. “Talvez, torne mais visível a trama narrativa em que estão envolvidos: os problemas, fragilidades, contradições, dramas profissionais e pessoais etc”.
Se não para desmistificar o linguista, conseguem os memes decodificar sua linguagem? Para Cem A., os memes podem ser úteis tanto para comunicar ideias complexas quanto para criticar textos inacessíveis – frequentes no mundo da arte – quando eles não lutam com força suficiente para conquistar seu leitor. A esses últimos Hilde refere como “textos exibicionistas onde as pessoas têm muito orgulho de mostrar que possuem um mestrado em palavras polissilábicas”.
“Acho que esse tipo de linguagem é usado como uma tática de intimidação e raramente as pessoas que usam essa linguagem têm controle total sobre o que dizem. Se tivessem, eles diriam muito menos, de uma forma mais lisa e palatável”, afirma e, espirituosa, coloca a questão: “Já ouviu falar de um meme?”. Segundo a criadora do Jerry Gogosian, “você precisa de conhecimento cultural para entendê-los, bem como uma noção geral do tópico, mas é possível aprender a lê-los rapidamente e não há norma culta para estudar (por favor, veja como eu escrevo nos que faço)”.
De acordo com o New Memeseum, o panorama memético é muito diverso para afirmarmos categoricamente que os memes tornam algo mais acessível, podendo ser tão ou mais truncados que muitos textos curatoriais ou falas de artistas. “Por vezes, a recepção dos memes vão desde o ‘ok, entendi’ até o ‘o que que realmente isso quer dizer?’ – há um grande espectro entre a transparência e a opacidade e isso faz dessa linguagem algo tão interessante de se trabalhar”.
Tal nuance combinada com humor permite que os memes abordem assuntos importantes, às vezes relegados por meios consolidados. Estamos falando da mídia tradicional também? Sim, mas essa briga entre nova e tradicional é cafona; a existência de uma não preclude a outra. Porém, o anonimato dos produtores de memes (Hilde teve sua identidade revelada, na verdade, em um artigo do portal Artnet, que claramente não entendeu a brincadeira) junto com sua irreverência e a desobrigação aos heróis do mundo da arte, realmente, lhes dá passagem livre por corredores mais estreitos.
“É quase impossível administrar um negócio sustentável no mundo da arte. Os meios de comunicação também estão incluídos nisso. Portanto, posso ver porque suas escolhas editoriais tendem a ser conservadoras. Dito isso, eu não concordo de forma alguma com a abordagem deles”, afirma Cem A., quando menciono o caso da exposição Arte em Campo, realizada no final de 2020 e noticiada com a neutralidade de um detergente. O evento reuniu cerca de 25 galerias e 54 artistas para celebrar o “novo Paca”, resultado de sua concessão à iniciativa privada por 35 anos. Era a oportunidade de “se despedir” do estádio que teria, meses depois, a área que abrigava seus ingressos mais acessíveis demolida. A curadora Pollyana Quintella conta ter se perguntado qual era o papel da exposição ali, “além de maquiar, sofisticar e proporcionar uma fachada cool que justificasse interesses que estão longe de favorecer a cidade”. Logo, esse tipo de noticiário – ou distribuição de “meras peças de relações públicas cuidadosamente elaboradas”, como descreve Hilde – também entra no radar das páginas de memes.
Aproveitando o flagra do affair arte ♡ neoliberalismo, Cem A. não deixa de chamar atenção para “o trabalho invisível” dos projetos digitais: “Muitas vezes as pessoas esquecem o tempo e o esforço necessários para montar um projeto digital. Os memes também estão incluídos nisso. A pandemia nos mostrou que a internet agora é parte integrante do ecossistema da arte e muitas vezes pode atingir públicos maiores do que é possível no mundo físico. Precisamos fazer mais para lidar com as desigualdades financeiras nesse paradoxo e compensar os artistas que priorizam o digital de forma mais justa”.
Para abordar o elefante na sala antes de terminar este artigo: afinal, memes são arte? “Costumamos pensar que, por maior que seja a distância, eles possuem alguma ligação com o conceitualismo dos anos 1960 e 1970, principalmente no que concerne às operações realizadas entre palavra e imagem”, assinala o New Memeseum. Já Cem A. acredita que os memes devam ser reconhecidos no contexto da arte porque carregam qualidades estéticas e conceituais. “No entanto, isso não significa necessariamente que devam ser considerados obras de arte ou ‘arte contemporânea’”, e salienta: “Na verdade, devemos questionar coletivamente a suposição de que a arte contemporânea está em um nível superior”. Essa e as outras questões apontadas acima ainda devem ganhar fôlego. “Acreditamos que nada tenha se esgotado porque, na arte, esses debates mal começaram”, reiteram os produtores brasileiros de memes.