Da Rua Sapucaí, ao lado da Estação Central de metrô de Belo Horizonte, é possível ver 18 empenas grafitadas. Considerado o primeiro mirante de arte de rua do mundo, o local dá vista aos trabalhos gerados nas cinco edições do Circuito Urbano de Arte, o CURA. Neste ano, o festival se despede da icônica vista e chega à Praça Raul Soares, marco zero da cidade.
Para ir de um ponto a outro, caminhamos pela Av. Amazonas. Em suas margens, encontramos Selva Mãe do Rio Menino, primeira empena pintada por uma artista indígena no mundo, realizada por Daiara Tukano no CURA 2020. “Pedimos licença para, então, desaguar nesse novo território, rico em história e memória: uma praça-circular, local de travessias e atravessamentos”, conta Priscila Amoni, idealizadora do festival ao lado de Juliana Flores e Janaína Macruz.
A investigação do território foi o primeiro marco desta edição. Considerada o centro geográfico de Belo Horizonte, a Praça Raul Soares se configura como encruzilhada. Ela conecta as regiões leste, oeste, norte e sul da cidade, bem como é ponto de intersecções de culturas. O chão do espaço, feito em mosaico português, é repleto grafismos marajoaras – povo indígena considerado extinto, que sobrevive em seus descendentes. Já a fonte, no centro da praça, nos remete à imagem da Chakana, a cruz Inca – povo originário do Peru, país onde fica a foz do rio Amazonas.
A Chakana adiciona uma nova camada de significado a este território, ao que é dividida em três partes “que representam três mundos: o mundo inferior, dos mortos; o mundo que vivemos, dos vivos; e o mundo superior, dos espíritos”, compartilham as idealizadoras. Foi lendo os signos desta praça que o CURA 2021 foi gestado. “Queremos mergulhar nesse lugar para nos conectarmos à vida que ali pulsa, ontem e hoje, no asfalto, edifícios, comércio, bares, igrejas e inferninhos. Queremos abrir um portal, criar dimensões, adentrar outros mundos dentro do nosso próprio mundo, conectar com outros seres e existências, alterar o ritmo da vida e do cotidiano”, explica Priscila Amoni.
Assim, em junho de 2021, deram início às reuniões que desenhariam esta edição do festival. Para isso, convidaram duas artistas a integrarem a curadoria: Naine Terena – mestre em artes, doutora em educação e mulher do povo Terena – e Flaviana Lasan – produtora e educadora especializada em ensino de História e América Latina, com investigação focada na história da arte produzida por mulheres.
Em coletiva de imprensa, realizada em 22 de setembro, Naine compartilhou suas visões sobre o processo curatorial: “Acho que, sobretudo, tivemos a oportunidade de exercitar a escuta, exercitar o poder de um pensamento que foge ao rotineiro, de ver as perspectivas de reunir saberes, encontros, distintos materiais e suportes de produção”. Para Flaviana, isso levou a duas dimensões principais do festival: “Uma primeira, do corpo, em constante exercício de luta para a preservação das memórias, e uma segunda, na condição sobrenatural, que nos ajuda a organizar o absurdo que é o cotidiano e auxilia a dar conta do que é desconhecido”.
O desaguar
Esta edição do Circuito Urbano de Arte, iniciada no dia 21 de outubro, conta com pintura do chão da Av. Amazonas e de três empenas, bem como traz uma instalação urbana, uma vivência à Praça Raul Soares e gera um catálogo de registro.
Na empena do Edifício Levy, são pintados os cantos de cura Huni Kuin, por Kassia Rare Karaja e o Coletivo Mahku – Movimento dos artistas Huni Kuin. “A gente está precisando muito [de cura]: o Brasil e o planeta precisam. Escolhi uma pintura para esse momento de pandemia e pelas perdas irreparáveis”, afirma Kassia. Já a empena do Edifício Paula Ferreira está sob responsabilidade do mineiro Ed-Mun: “É uma arte em homenagem à escrita, à comunicação por símbolos e grafismos, inspirado na arte marajoara, mas com um estilo urbano contemporâneo que é o graffiti 3D”. A terceira empena será ocupada por Mag Magrela, selecionada na convocatória pública dentre 327 inscritos de 21 estados brasileiros. Já o Giramundo, grupo mineiro de teatro de bonecos que acaba de completar 50 anos de história, será responsável por uma instalação inédita na fonte da praça.
No dia 29 de outubro, o chão da Av. Amazonas recebe a pintura-ritual de Sadith Silvano e Ronin Koshi, artistas do povo Shipibo, do Peru. A obra será pintada ininterruptamente, 24 horas por dia. “Com muita alegria e satisfação difundimos nossa cultura, através dos murais que criamos. Nos murais estampamos o conhecimento de nossos ancestrais”, declara Ronin Koshi, também ativista e líder indígena.
Entre os dias 30 de outubro e 2 de novembro, a praça se torna então cenário da vivência guiada por Tainá Marajoara numa criação coletiva com Mayô Pataxó, Patrícia Brito e Silvia Herval. A centralidade do ato estará em quatro alimentos-chave que têm valor ancestral: farinha de mandioca, tucumã, pimentas e beijus. Durante a ação, haverá um espalhar de sementes nas pedras portuguesas. “A gente quer atuar num processo de contracolonização, florescer no chão (ainda que simbolicamente) jenipapo, tucumã, urucum… entendendo que a pedra da colonização precisa sair do nosso caminho e, com ele, este sistema de pisotear, de cimentar nossa memória, nossa história, nossa identidade”, diz Tainá.
Um mergulho nas artes urbana e ancestral
Vale pontuar que para além das travessias, a Praça Raul Soares é, sobretudo, um lugar de encontros de pessoas e histórias. Esse traço do território é parte fundante do CURA 2021. A edição põe a praça como epicentro para que as pessoas possam viver a cidade de uma outra forma, inseridas no meio das obras. “Uma experiência imersiva de apreciação artística”, afirma Juliana Flores. As demais idealizadoras do festival completam: “Se o mirante da Sapucaí nos convoca a ver, a Praça Raul Soares incorpora também o ser visto. Na praça, o público estará no centro e as novas empenas, serão como entidades que nos olham e nos guardam”.