O projeto Corpos de Phonosophia, de Camila Sposati, concluiu a terceira edição da residência Belojardim, no agreste pernambucano – que após interrupção por dois anos, devido à Covid-19, volta em formato semi-digital. Ao longo do trabalho, liderado pelas curadoras Cristiana Tejo e Kiki Mazzucchelli, não faltaram surpresas ativadas pelo diálogo entre a música e a cerâmica, além dos movimentos corporais trabalhados junto a um grupo de 14 moradores de Belo Jardim. As referências culturais locais foram o ponto de partida para chegar a um projeto impregnado de memórias e histórias afetivas em torno do barro, elemento originário da cultura brasileira, cuja ancestralidade vem das matrizes indígena e africana. As residências surgiram no contexto do Instituto Conceição Moura, a partir de conversa entre Cristiana Tejo e Mariana Moura. Ambas deram os primeiros passos para tornar público o desejo de trabalhar com a comunidade de Belo Jardim, cidade contaminada por poéticas da região. Foram chamados profissionais de cinema, teatro, dança e música e Tejo assumiu a curadoria das artes plásticas. “Há algum tempo vinha conversando com a Kiki sobre cultura popular, Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães, e a convidei para dividir a curadoria.” Desses diálogos nasceram as duas primeiras edições, com projetos dos artistas Marcelo Silveira, em 2017, e Carlos Mélo, em 2018, ambos nascidos na região e conhecedores de Belo Jardim há vários anos.
Dirigir um projeto dessa magnitude corresponde, de um modo realista, a se abrir a novos horizontes. Para esta terceira edição as curadoras ampliaram o convite a outros locais e convidaram Camila Sposati, cujo projeto Corpos de Phonosophia une delicada e complexa reflexão sobre instrumentos de sopro e as possíveis conexões com os órgãos humanos, tema que ela pesquisa há tempos. “Desde 2015 trabalho com instrumentos. Me entusiasmei com a possibilidade de trabalhar em Belo Jardim, fui conhecer o lugar e fiz uma proposta”, diz ela. De qualquer forma, queria que o contexto influenciasse a obra, então readaptou o trabalho para o agreste. Camila permaneceu em Belo Jardim só por dois meses, mas para reconfigurar o projeto trabalhou três anos. Quando chegou a pandemia, a artista teve que retornar a Viena, onde mora, mas contou com uma equipe de confiança in loco para ajudá-la a levar o projeto adiante. “Acompanhei tudo virtualmente e contei com a coordenação de David Biriguy, um poeta e produtor cultural de Belo Jardim que conhece bem os artistas locais e soube escolher os participantes. Ele tornou-se um co-curador.” Logo no início, deixou claro aos participantes que não haveria interferência nos trabalhos e todos aceitaram entrar no projeto, que não é nada simples, reconhece Camila.
Cada um deles foi protagonista de um instrumento, que na verdade, é um objeto escultural que poderia ser moldado como quisessem, até em formato de um triângulo, quadrado ou hexágono, não importava. Experimentação é um dos desafios dessa residência que deu asas aos participantes para escolherem que tipo de som eles queriam fazer. Ao serem indagados, escolheram o som político. “As pessoas querem fazer o som para sociedade, o som da rua, da raiva, da angústia, do respirar, do medo”, argumenta Camila. A escolha não surpreende, uma vez que o Teatro Legislativo (1996) de Augusto Boal, é um dos pilares conceituais de Corpos de Phonosophia. Ele consiste em uma das técnicas do Teatro do Oprimido que une teatro e política, numa espécie de cidadania ativa.
Camila conheceu os residentes no início dos trabalhos quando ficou na cidade e, como não foi possível voltar para outra imersão por causa da pandemia, David Biriguy fez a ponte entre a curadoria e os residentes. Cristiana Tejo lembra que ele foi identificando as pessoas e chegaram a um time afinado. Os 14 participantes foram divididos em três grupos, por questões sanitárias. Camila convidou Amália Lima, que é coreógrafa, paraibana radicada no Rio há anos e preparadora de corpo para espetáculos de dança, teatro e para a TV Globo. Elas tiveram encontros digitais duas vezes por semana. “Eu passava os exercícios de som e a Amália os de corpo. Aos poucos os grupos foram unindo o corpo, o barro e o som. “As atividades de Amália propõem exercícios corporais que mantêm os desejos, partindo do corpo até a elaboração do instrumento. O desejo pode ser uma sentença, uma palavra, uma nota. Cada instrumento toca uma nota, um som.” Elaine Lima, líder da comunidade quilombola do Barro Branco, na região do Belo Jardim, foi outra pessoa importante no projeto que se estendeu até aquela área.
Com o trabalho concluído, uma das formas de viabilizar a exposição, que acontece digitalmente, foi gravar o som em estúdio, separado dos instrumentos. Por motivo de orçamento não houve a queima do barro, o que deve ocorrer mais tarde, segundo Tejo. “Tínhamos a urgência de falar a partir do Teatro Legislativo, do Boal, isso era importante nesse contexto e era nossa prerrogativa. Cada elemento da equipe vive em lugar diferente, com sua formação, desconstruindo o protagonismo do curador. Tudo foi pensado em rede, cada um com o seu saber”, comenta Tejo.
Os instrumentos estão prontos, alguns com curva volumosa que se multiplica em bocais, outros com sua exterioridade curvilínea que lembra um vaso de flores. Todos escondem seu som secreto que corresponde, de modo sutil, aos humores, ritmos e objetivos diversos de seus autores. Os objetos/instrumentos exteriorizam os aspectos formais do aprendizado e agora se transformaram em protótipos digitais. Os residentes escolheram os três locais onde os instrumentos serão mostrados em situações espaciais de contraste: na cidade de Belo Jardim, na fábrica Mariola e nas margens de uma cachoeira, tudo em vídeo mostrando obras, espaços, pessoas, com direção de Ruda Cabral. Tejo considera a cena final meio surreal: um instrumento sozinho figurando num espaço e o som gravado ecoando digitalmente. Lembrando Jean-Paul Sartre, esses músicos/ceramistas souberam dar à sua matéria a única unidade verdadeiramente humana: a unidade do ato. É isso que difere um projeto estruturado de outros expostos ao exotismo turístico, chamariz para artistas estrangeiros em trânsito. A Residência Belojardim talvez não ocorra no próximo ano, tudo depende do atual governo. A esperança é que em 2023 tudo volte ao normal e a cultura reencontre o seu lugar, de onde nunca deveria ter saído. ✱