Em cartaz no Masp, a exposição “Histórias da Sexualidade” busca investigar por meio de quase 300 obras um dos temas mais candentes da humanidade. Como sintetiza Lilia Schwartz, uma das curadoras responsáveis pela mostra, a mostra procura entender como “sexo, gênero e desejo” são aspectos “fundamentais em nossas representações sociais, formulações ideológicas, percepções cotidianas e experiências visuais”. Após dois anos de investigações e discussões, a mostra traz um conjunto significativo de obras, que ganham destaque a partir de uma constante estratégia de confronto que, ora explorando sintonias, ora reforçando diferenças, sublinham diferentes formas expressão em torno do sexo.
Por outro lado, a exposição parece pecar pelo excesso de critérios internos, que acabam por conduzir de maneira um tanto forçosa a apresentação e a leitura dos trabalhos. O que foi pensado como uma mostra libertária acaba, em função da sua própria estrutura – a segmentação em nove conjuntos “temáticos” sem grande coerência interna, a não ser o fato de terem íntima relação com o tema da sexualidade ou expressarem questões muito candentes da atualidade –, adquirindo um caráter engessado. Em outras palavras, se em alguns momentos esse recorte excessivo ajuda a organizar as ideias e dá ao visitante uma série de palavras-chave por meio das qual ele pode “ler” a maioria dos trabalhos, por outro o mesmo esforço ordenador acaba por conduzir demasiadamente a fruição, subjugando a poética a categorias de interpretação externas à obra de arte.
É difícil saber quais foram os critérios adotados para a adoção dos nove grupos eleitos, que vão do núcleo inicial, intitulado “Corpos nus” (com uma bela seleção de pinturas do gênero), ao bloco final dedicado às “Políticas do corpo e ativismos” – abrigado no subsolo do museu –, passando por capítulos como “Voyeurismos” e “Religiosidades”, mas provavelmente correspondem a temas com presença significativa no acervo do museu.
Em alguns casos a significância e potência dos trabalhos supera as segmentações. É o caso por exemplo de “Lado Feminino/Lado Masculino”, de Chico Tabibuia, e “Sapho”, de Francisco Leopoldo e Silva estão entre as obras que não se restringem à uma categoria específica e abrem simbolicamente a mostra, que pode ser vista até 14 de fevereiro. A escolha das duas obras revela muito sobre os partidos tomados e as questões que a curadoria procurou iluminar. Em primeiro lugar, há um evidente choque entre as duas esculturas. De um lado temos uma obra clássica, com toda a nobreza do mármore, que se insere no respeito aos preceitos acadêmicos da representação do nu feminino. De outro, um belo exemplo de arte popular, confeccionado por um artista claramente excluído do circuito oficial da arte, cuja representação rudimentar de um homem e uma mulher nus num único tronco de madeira ilustra um dos temas mais significativos nesse mergulho na representação artística da sexualidade: a noção de identidade sexual e o tema da indefinição de gênero.
Talvez seja essa a questão mais destacada ao longo da exposição, presente em quase todos os subnúcleos, com um bloco inteiramente dedicado a ela (“Performatividades de Gênero”) e simbolicamente elaborada no caso exemplar de Gauguin. Tomando como ponto de partida a tela “Autorretrato (perto de Gólgota), pintada por ele em 1896, faz-se toda uma digressão sobre a importância da androginia na obra do artista, num aprofundamento de caráter mais psicológico do que plástico, que destoa um pouco da linha condutora da mostra que, mesmo alinhada com uma perspectiva multidisciplinar, busca a maioria de suas referências na análise dos vínculos entre a sociedade, seus problemas contemporâneos e a cultura visual. Tal abordagem está na base da estratégia curatorial do museu, que há algum tempo vem procurando investigar a relação entre a arte e alguns temas que ganham relevância na atualidade. A mostra dedicada ao sexo é a quarta de uma série de investigações, que no passado se dedicaram aos temas da infância, da loucura e do feminismo, e no futuro abordarão as histórias afro-atlânticas e indígenas.
Outros diálogos, espalhados ao longo da exposição, merecem atenção, como a contraposição entre a imagem de mulher primitiva criada por Ana Mendieta e a fotografia “O Escultor e a Deusa”, de Ernesto Neto. A sensualidade da imagem da boca do artista “emoldurando” uma pequena divindade feminina não é algo comum na exposição. Evidentemente o erotismo e a representação visual do desejo – tema importante na história da arte – tem seu lugar na exposição, mas se encontra diluído em meio a outras tantas questões mais presentes como a incomunicabilidade, a indiferenciação, o uso do sexo como poder ou como arma política.
Há uma série de exemplos de denúncia enfática, como as telas de Descartes Gadelha, que retrata o caráter grotesco do turismo sexual e pedofília na praia de Iracema, em Fortaleza, ou a série “Para Hereges”, de Leon Ferrari, na qual desenhos eróticos são sobrepostos a gravuras de passagens bíblicas de Dürer, explicitando os vínculos entre religião, opressão e perversão. Parecem menos relevantes os trabalhos em que o erotismo e a sensualidade predominam, como no caso de Alair Gomes e Tracey Moffat (outro dos grandes encontros da exposição). Quem for à “Histórias da Sexualidade” em busca de cenas tórridas ou imagens que se aproximam da pornografia, ficará frustrado.
Ao final do percurso, resta ao visitante a sensação de um certo mal-estar contemporâneo diante de uma repressão sexual permanente, que agora renasce com força, e contra a qual os artistas se batem de forma um tanto desesperançada, mas intensa. Ilustra essa sensação a obra de Sergio Zevallos Santa Rosa, associada ao contexto de perseguição aos homossexuais no Peru, na qual se vê um homem de cócoras, atado por cordas reais amarradas diante de sua imagem, cujo título é “Esperar la hora que cambiará nuestra costumbre no és fácil”.