Quando seu pai lhe entregou as chaves da velha fábrica, o artista Francisco Brennand confessou que ali entrava para nunca mais sair, e assim o fez. Foi em 11 de novembro de 1971 que Brennand, aos 44 anos, decidiu ocupar as ruínas da Cerâmica São João da Várzea – um complexo de 15 km2 – e torná-la seu ateliê.
Falecido em dezembro de 2019, Brennand tomou duas providências antes de morrer: “Confeccionou a sua própria urna funerária num conjunto de esculturas chamado de Templo do Sacrifício; e transformou a Oficina Brennand numa instituição privada com fins públicos. Se assegurou que as terras onde se localiza a oficina não pudessem ser vendidas nem ter a finalidade alterada. Desta maneira, sua obra não poderia ser esquecida”, como nota a marchand Cecília Ribeiro Peirão. A criação da urna está intrinsecamente ligada à sua profunda relação com o local. À Folha de S. Paulo, em 2013, chegou a confessar: “Eu lido com fogo há muitos anos… quero me transformar naquilo que é, vamos dizer, uma cerâmica, então eu vou ser cremado, volto pra essa urna, parte de minhas cinzas ficará nessa urna e o restante será jogado lá na casa do [engenho] São Francisco, onde eu vivi, de onde veio a minha família”.
Agora, meio século depois da ocupação do artista, a oficina transformada em instituto organiza uma grande exposição que mostrará cerca de 200 itens – entre pinturas, esculturas, gravuras, serigrafias e documentos – garimpados do acervo permanente do instituto (que conta com mais de 3 mil obras), de coleções privadas e museus. “Eu nunca me preocupei com unidade porque a sensação que eu tenho é de vários, nós somos vários”, chegou a atestar o artista.
Batizada Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand, ela ficará em cartaz até outubro de 2022. Seu recorte curatorial tem por base os pilares conceituais “Natureza”, “Território” e “Cosmologias” – tópicos que também norteiam o programa da nova fase do instituto e marcam a produção do artista. Nesta proposta, o pilar “Natureza” permite pensar o ecossistema como identidade, mas também oferece uma oportunidade para eliminar a suposta dicotomia entre natureza e cultura. Ao mesmo tempo, sua escolha está ligada ao fato de que “é impossível pensar em natureza sem pensar em território, sem pensar em cosmologias”, afirma Júlia Rebouças, atual diretora artística da instituição, que divide a curadoria da mostra com a venezuelana Julieta González.
“No universo de criação de Brennand há uma grande diversidade de espécies híbridas, que fusionam existências animais, minerais, vegetais, sempre em tensão com as formas humanas. A natureza também está presente a partir da convivência com essas duas entidades importantíssimas, presentes e constituintes ali do que ele entende como território da oficina, o Rio Capibaribe e a mata da Várzea”, explica Rebouças. É justamente a esse entorno que se refere o eixo “Território”, com foco na geografia e história da região. “Estamos desenvolvendo ações específicas para a região, que começaram com o estreitamento de uma rede de relacionamento. Em 2021, para além de uma ampla formação de professores, de parcerias com a UFPE, lançamos uma residência educativa que serviu inclusive para levantar proposições de trabalho na região. Com o aprofundamento dessas ações, o educativo está sendo formado e projetos e políticas de trabalho com a Várzea devem ser anunciadas”, coloca a diretora artística. “Cosmologias”, por sua vez, pretende abordar o aspecto fabulador e automilotologizante do artista (descrito por sí próprio como “feudal” e “supersticioso”) através das evocações arquetípicas, literárias e filosóficas em suas obras. “Eles [se referindo às esculturas que Brennand chamava de ‘guardas’] estão em cima do muro que, na verdade, rodeia toda a fábrica e isso fecha a cidadela, com todos os seus mistérios”.
Segundo Rebouças, “Brennand entendia que a memória e a preservação de sua obra precisavam do tensionamento do presente. A criação do instituto com o propósito de abrigar outras produções era resultado disso”. Aqui se encontram duas missões para a nova fase da oficina, uma de criar diálogos com o contemporâneo – sobre cuja arte Francisco reconheceu publicamente: “Nada disso me interessa”; outra de preservar a memória do artista para além da sua fortaleza. A exemplo disso estão as peças doadas por ele para o Parque das Esculturas, em Recife, em razão dos 500 anos do descobrimento do Brasil – muitas foram roubadas ao longo dos anos. Curiosamente, no documentário de 2012, homônimo ao artista, ele diz: “As esculturas vão receber sol e chuva, atravessar noite e dia e elas vão durar para sempre se não forem destruídas, só a mão do homem pode destruí-las”.
Em relação à segurança futura das peças no Parque de Esculturas, Marianna Brennand, sobrinha neta do escultor e presidente da oficina, afirma: “Esse projeto sofreu com vandalismo desde a sua inauguração, com muito infortúnio. Ao longo do tempo algumas obras foram sendo repostas, mas nos últimos anos a situação se agravou e quase todas as obras em bronze foram roubadas”. Ela observa, no entanto, que a atual gestão da prefeitura (de João Campos, do PSB) está empenhada em trazer uma solução de longo prazo, não apenas com o restauro do parque mas com ações de reforço na segurança do espaço e melhorias no fluxo e acolhimento dos visitantes. A Oficina está colaborando e dando o suporte necessário, além de fornecer peças de reposição e atuar no restauro das peças cerâmicas”, assegura Marianna. Ela menciona também que o artista Jobson Figueiredo, parceiro de Brennand no projeto original, está desenvolvendo as peças em bronze a partir dos moldes originais.
Para o futuro, a monumental olaria conta com uma ampliação capitaneada pela METRO Arquitetos Associados, tendo em vista a missão de fazer intervenções que considerem o fluxo do público no espaço ao mesmo tempo que respeitem as características seminais e históricas do espaço original. Enquanto as transformações ocorrem, Devolver a terra à pedra que era: 50 anos da Oficina Brennand segue seu rumo normalmente, não sendo, no entanto, a única mostra sobre o pintor e escultor a tomar lugar no momento. Em São Paulo, até 29 de janeiro de 2022, na galeria Gomide & Co (que representa o espólio de Brennand desde o começo de 2021) pode ser visitada a exposição Francisco Brennand: Um primitivo entre os modernos, também com curadoria de Julieta González. ✱