Um dos méritos em torno das comemorações dos cem anos da Semana de Arte Moderna é que a efeméride vem ganhando um tom crítico em torno do evento. Afinal, após tanto debate já acumulado sobre o protagonismo paulista ao longo desses cem anos seria estranho não aproveitar o momento para uma revisão dos significados da Semana e do próprio projeto moderno brasileiro. Em um momento de rever narrativas hegemônicas, sem dúvida chegou a vez da Semana.
Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio, insere-se dentro dessa perspectiva e uma de suas marcas centrais é a inclusão de 200 artistas de todo país em cerca de 650 obras, com um recorte que valoriza produções nem tão reconhecidas. Nesse sentido, a mostra é menos uma exposição de obras primas e mais um imenso caleidoscópio na produção nacional. Ela é também uma forma de reparação, ao trazer para o debate da Semana muitos artistas até então invisibilizados, especialmente os fora do eixo Rio-SP.
O título em si já aponta para desconstrução da própria Semana, mandando-a para o “raio que o parta”, nome dado em Belém do Pará à decoração das fachadas das casas feitas por cacos de azulejos, reunindo tanto padrões abstratos como figurativos. Um vídeo logo na entrada da mostra, realizado por Danielle Fonseca, documenta exemplos dessas construções com testemunhos de moradores que usaram tais procedimentos em suas casas. Ou seja, trata-se de um estilo contra-hegemônico e fora do padrão de caráter vernacular. Apesar desse ótimo começo, não há mais casos para esse tipo de processo construtivo alternativo, o que é uma pena.
Mesmo assim, não faltam obras surpreendentes, como o potiguar Dorian Gray (1930-2017), que comparece com uma tapeçaria com motivos florais de 1973. O artista com nome de personagem de Oscar Wilde é uma das descobertas felizes da mostra.
Com curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca e consultoria de Fernanda Pitta, Raio-que-o-parta é organizada em quatro módulos: Deixa falar; Centauros iconoclastas; Eu vou reunir, eu vou guarnecer; e Vândalos do apocalipse.
O primeiro se dedica a um debate bastante contemporâneo que diz respeito à apropriação cultural. Ele traz, entre outras obras, uma espécie de colagem em feltro de Regina Gomide Graz (1897-1973), chamada Índios, da década de 1930, na qual estão representados indígenas caçando. Procedimento típico do modernismo, essa representação de culturas “exóticas” ou “selvagens”, como eram designadas na época, pode ser vista agora em um contexto de revisão sobre lugar de fala. Algo semelhante ocorre com os vasos de prata de Maria Hirsch da Silva Braga (1875-1960), muito impressionantes aliás, ornados em padronagens indígenas. Hoje, tais obras são questionadas por se apropriarem de outras culturas.
“Ao presumir que os indígenas estariam ‘extintos’ ou ‘aculturados’ e que, por isso, supostamente deveriam ter suas memórias ‘preservadas’ pela obra de artistas brancos, a arte nutriu uma economia simbólica ancorada na impossibilidade histórica de autorrepresentação que, por sua vez, se atualiza constantemente no ‘bem-intencionado’ e lucrativo horizonte estético e político da representação do Outro”, discorre a curadoria em um discreto texto na parede, mas que conduz a mostra para o debate decolonial de maneira explícita. Esse, aliás, é um dos méritos de Raio-que-o-parta: apresentar uma visualidade potente e diversificada, mesclada a textos pontuais críticos que problematizam questões vinculadas às obras selecionadas.
Assim ocorre também nos demais módulos, Centauros iconoclastas, que aborda ações performativas e transformações; Eu vou reunir, eu vou guarnecer, sobre a festa e a criação coletiva; e, finalmente, Vândalos do apocalipse, que trata das ruínas e catástrofes derivadas do projeto modernista nacional. É nesse último que estão pinturas de José Antonio da Silva (1909-1996), como Trem e Lavoura, de 1959, onde a visão de progresso já era denunciada como a destruição das florestas, antecipando o papel arrasador do agronegócio.
Uma exposição tão abrangente – vamos relembrar, são 650 obras, incluindo até o tríptico Sôdade de Cordão, de 1940, do artista ucraniano radicado no Brasil Dimitri Ismailovitch (1892-1976) – em um espaço difícil e pequeno, ganha potência graças a uma montagem arquitetônica simples e modesta, que deixa as obras em primeiro plano. Seria excelente um catálogo que documentasse essa ampla pesquisa, afinal são os catálogos que ficam para a história. E, nessa narrativa, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, finalmente, não são as protagonistas. Mesmo faltando um registro para o futuro, Raio-que-o-parta trata-se de uma das mais contundentes reparações sobre o modernismo e sobre a Semana no presente.