Dias atrás, depois de um papo informal no Facebook, recebi oito páginas digitalizadas da íntegra de uma reportagem com Jorge Ben Jor publicada na edição de janeiro de 1976 da Ele Ela, período em que ele ainda defendia o codinome artístico Jorge Ben. Assinada pela repórter Daysy Cury de Abreu e veiculada originalmente no número 81 da revista voltada ao público masculino, a matéria foi gentilmente escaneada pelo jornalista e pesquisador João Antônio Buhrer, amigo precioso naquela rede social, que dedica o espaço de sua timeline majoritariamente para distribuir, de forma aberta, algumas joias digitalizadas de sua coleção de jornais e revistas da imprensa brasileira dos anos 1950, 60, 70 e 80.
Mas, afinal, porque esssa pílula documental, lançada espontaneamente por João no universo virtual, é algo assim tão valioso? Ora, porque diz respeito à história de alguém como Jorge, um dos artistas mais emblemáticos e proporcionalmente enigmáticos de nossa música popular. Mesmo no auge experimentado por ele nos anos 1960,70 90 e 2000, o cultuado Babulina nunca foi afeito ao expediente de falar regularmente com a imprensa local. Pura timidez, asseguram os mais próximos.
Na “fila do pão” do Jorge eu, por exemplo, sou só mais um repórter da imprensa cultural que passou anos e anos da vida profissional tentando armar um plá com o sujeito. Quando estive perto de tal façanha, fui acometido pela triste reafirmação da finitude que a todos nós persegue. Explico: quem estava dando a maior força para que a entrevista com Jorge acontecesse, Ivone Kassu, sua assessora – a gentileza personificada, uma mulher incrível – partiu dias antes de concretizarmos a ideia do papo.
Ivone esteve ao lado de Jorge e de outros grandes artistas, como Roberto Carlos, por décadas a fio. Braço direito do Rei, outro notório fujão dos microfones da imprensa, ela, melhor do que ninguém, entendia a natureza esquiva de Jorge e tentou me explicar o por que de seu silêncio. Dias antes de partir, em nossa última conversa por telefone, concluiu o papo em tom acolhedor. “Fique tranquilo, Marcelo. Tenho certeza que vai rolar!”.
Em reverência à Ivone, e em respeito à determinação da repórter Daysy, autora da matéria digitalizada pelo amigo João que foi o estopim desta reportagem – aliás, no texto, ela descreve, de maneira deliciosa, o périplo que foi abordar o sujeito – desencanei da ideia obsessiva de ter um papo com o Babulina e me contento, agora, de fazer aqui para vocês, caros leitores e fãs do Jorge, um apanhado de suas melhores declarações à imprensa entre os anos de 1966 e 1979.
Como fã incondicional do sujeito, passei uma semana mergulhando em tudo que eventualmente pudesse encontrar documentado na web em jornais e revistas do referido período. Quer dizer, fiz essa seleção buscando aquilo que está disponível online sobre ele, fuçando sites, blogs e algumas essenciais hemerotecas digitais, caso de Arquivos Incríveis, do amigo João (siga a página do jornalista no FB), e Velhidade, do colecionador Eduardo Menezes.
Fiquemos então com esse apanhado cronológico de documentação histórica sobre a vida e a obra de Jorge Ben Jor. Além dos recortes de reportagens e entrevistas, acrescentei pequenas resenhas, muito especiais, que abordam o lançamento de álguns dos clássicos lançados pelo sujeito no período áureo da fase Phonogram/Philips, caso de álbuns como Solta o Pavão e África-Brasil.
Boa leitura!
Depoimento de Jorge Ben para a edição 167 da revista InTerValo, da semana de 20 a 26.3.1966, em reportagem, não creditada, intitulada Subversivos do Samba Perseguem Cantor – Jorge Ben fez inimigos porque aderiu ao Iê-Iê-Iê (na ocasião, Jorge era patrulhado por ter, num curto intervalo, participado dos programas Jovem Guarda, Divino, Maravilhoso, celeiro televisivo da Tropicália, e O Fino da Bossa, que deveria, no protocolo da TV, ser seu reduto de origem, por associarem Samba Esquema Novo, Sacundin Ben Samba, Ben É Samba Bom e Big-Ben ao conceito da bossa, do samba jazz).
“Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba e da turma do samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o público que quiser. Sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais, minha música é cantada por todo mundo. Por crianças que mal sabem falar, por jovens e por adultos. O que quer dizer, é ‘sucesso’, mesmo sofrendo esnobação e pichação dos subversivos do samba.”
Trechos de É Dia de Jorge, reportagem de Scarlet Moon para a edição de junho de 1973 da revista POP.
Scarlett diz:
“…todo esse trabalho, por enquanto, está sendo feito para atender a pedidos de outros cantores. Ele faz as músicas de acordo com o estilo de cada um, mas só se o cara quiser gravar. Recentemente, Jorge criou a J.B. Coqueluche Band (as iniciais devem ser pronunciadas em inglês, jei-bi, e o restante com um bom sotaque nordestino), que já gravou um compacto simples, com o Hino do Flamengo numa faixa e Jazzpotato na outra. A banda também entrou na gravação do depoimento de Jorge para o Museu da Imagem e do Som. Mas a grande surpresa mesmo é o jazzpotato, um novo ritmo bolado por ele, bem quente, bem latino. O segredo está no tipo de harmonia que Jorge faz com a linha melódica. É uma espécie de portunhol (português com espanhol), misturado com inglês (“Is coming jazzpotato / aqui yo no quiedo más”).
Jorge, então, explica a origem do jazzpotato e fala sobre sua intuitividade.
“Nós ficávamos repetindo essa harmonização, até ficar todo mundo aceso para tocar as outras músicas. Mas aí apareceu a palavra jazzpotato (assim como ele agora está vidrado no som da palavra coqueluche, diz Scarlett) e o tema virou música mesmo. Quando escrevo música, vou fazendo as coisas do jeito que sinto, sem me preocupar com rimas ou adjetivos. Comigo as coisas são muito intuitivas e as pesquisas e elaborações não funcionam. Na maioria das vezes, não corrijo minhas músicas. Às vezes, a correção pode melhorar, mas acredito que existem casos em que a gente começa a mexer muito e a música se transforma em outra coisa, bem distinta e distante da idéia, da sacação inicial.”
Influências
“Sem nenhum vedetismo, sou uma pessoa que procura o mais possível defender suas ideias e agir de maneira própria. As coisas têm que ser sempre do jeito que eu quero, mesmo que eu quebre a cara. Não identifico meu trabalho com o de nenhum outro compositor. Não sei precisar as influências que possa ter sofrido, e acho isso muito legal.”
Resenha do álbum Solta o Pavão, não creditada, publicada na edição de dezembro de 1975 da revista POP.
Ninguém Segura Jorge Ben – Músicas simples, letras inspiradas, e uma influência maneira de Gilberto Gil: o novo álbum de Jorge Ben pintou, seguindo a mesma linha que ele adotou em A Tábua de Esmeraldas. O disco é Solta o Pavão, e suas músicas mais fortes são Jorge da Capadócia, Dumingaz, Jesualda, Dorothy e Cuidado com o Bulldog. Jorge, cuja excursão ao México foi o maior ouriço (ficou lá 20 dias), voltou e, depois de um descanso natalino, retoma suas transas europeias.
Resenha de Solta o Pavão, não creditada, também publicada na revista POP, em dezembro de 1975, na sessão Em Cartaz.
O pavão, o bulldog, Santo Tomaz de Aquino, velhos, flores, criancinhas, cachorros, o rei, Jesualda, o zagueiro que não pode marcar toca – Jorge Ben abre as janelas de sua cabeça iluminada e vai soltando tudo, numa mistura danada e irresistível. Neste novo disco, lançado pela Phonogram, Ben confirma que é um dos compositores mais soltos e descontraídos da moderna música popular brasileira. E que é um dos intérpretes mais fortes e originais. E sua música cheia de balanço, quase crua, com jeitão primitivo. Ah, chega de adjetivos! Vamos é cair na dança, ao som de Jorge Ben!
Resenha do álbum África-Brasil publicada por Ana Maria Bahiana no Jornal de Música na edição de janeiro de 1977
Voa Jorge, Jorge voa! Lição de antropofagia, de volta por cima, de salutar digestão da massificação nossa de cada dia. Contra os enlatados e a música de merchandising, Jorge constrói sua cabeça de ponte com puro ritmo animal, negro, infinitamente brasileiro. De novo, Jorge voa!
Resenha de África-Brasil publicada por Oscar Pitta na edição de janeiro de 1977 da revista POP.
É realmente impossível ficar indiferente ao ritmo quente e explosivo que Jorge Ben e seu grupo – o Admiral Jorge V Ben – detonam em África-Brasil. É rock? É samba? É soul? É maracatu? Nem isso nem aquilo. É simplesmente o som (e marca registada de Jorge Ben, que nasce da genial união de guitarras, teclados, cuíca, surdo e atabaques, contagiando os sentidos num irrecusável convite à dança primitiva e sensual). África-Brasil é uma celebração. Aproveite.
Trechos da reportagem Eu Quero é Fazer um Som que Seja Universal, não creditada, publicada na Revista Música, em dezembro de 1977.
“Eu não me apresento (em teatros) porque dependo do empresário Marcos Lázaro. Sempre achei legal trabalhar em teatro, mas quando chego para bater um papo, Marcos diz que não é uma boa, que a ocasião não é propícia. Eu gostaria de fazer um trabalho para universitários e realmente já pintaram muitas propostas, mas eu não posso passar por cima do empresário. Sabe, eu curto tanto o público de teatro como o de baile. O primeiro vai curtir caladinho – e a gente vai trabalhar com a aquela vontade de fazer tudo certo, de cantar bonito, de transar aquele som gostoso. Vai ser um trabalho quase que despreocupado. Agora, em baile, é aquela agitação, e eu também gosto de sentir o cara cantando e dançando. Realmente isso também me empolga muito.”
Sobre os shows feitos por ele na Europa e nos Estados Unidos em 1977.
“A gente toca um samba médio, como Que Nega é Essa, com características mais universais, que pode ser um blues, mas é sambão mesmo. Tocamos um frevo, como Taj Mahal, que é mais sofisticado, e tocamos Zazueira, com um ritmo bem brasileiro, mas de baião. Os caras querem morrer!.”
Jorge aponta que fez shows na Itália, no Teatro Sistina, além de 15 dias de temporada com Jair Rodrigues no Olympia de Paris, com casa lotada.
“Eu percebi que os caras ficavam bobos, abismados, porque pensavam que música brasileira é só aquela que toca na época do Carnaval. Eu acho que vai ser a hora da música brasileira, porque os caras estão cansados de música pop. E, depois, os artistas de lá já não cantam as canções deles. Podem cantar no idioma local, mas as músicas são americanas: soul music, rock. Então, a nossa música mexe com eles.”
Jorge aposta no sucesso de Belchior e João Nogueira.
“Eu acho que futuramente vai aparecer um grupo fazendo música brasileira diferente. Há aqueles que estão tentando um som universal, mais eletrônico, e há aqueles que estão tentando um som de raízes. No momento, há um cara que está na moda, e que eu considero poeta, é o Belchior. Ele fala mais do que canta, e fala uns troços bonitos. E tem um outro, João Nogueira, que dá um recado importantíssimo com a divisão dele. Eu acho que o trabalho dos dois vai criar escola.”
Jovem Guarda, Tropicália e posicionamento político.
“A Jovem Guarda foi um impacto e uma barreira que eu consegui ultrapassar, porque eu era muito tímido musicalmente. Eu tinha medo de me apresentar para o público, ficava nervoso para tocar. Na Jovem Guarda conseguia me desinibir pelo calor que o público dava pra gente. E depois, quando passei para a Tropicália, foi demais. Aliás, foi uma pena acabar a Tropicália, porque era um negócio, assim, bem alegre e dançante. A minha música não tinha nenhuma conotação política. Nesse período compus Que Pena, País Tropical, Zazueira, todas bem dançáveis e uma música real e verdadeira. Charles Anjo 45é a história de um amigo de infância. Mas eu não sei fazer nada político. Minhas músicas são românticas, e eu acho que digo alguma coisa com elas.”
O som universal
“Meu trabalho é de raízes, mais para o popular. Quando faço uma canção, faço primeiro para mim, porque eu gosto de música, mas daí eu as testo em crianças. Se elas gostam é porque é boa mesmo. Eu quero é fazer um som que seja universal, mesmo sendo cantado em português”.
Do violão para a guitarra*
“Em princípio eu tentei colocar um microfone no meu violão, mas dava microfonia, daí eu adquiri um violão Ovation, de cordas de náilon e amplificado. Finalmente passei para a guitarra. Mas não foi fácil, porque a guitarra tem mais recursos, mais braço, então tem que estar bem afinada e a gente tem que ferir as cordas direitinho, tem que swingar diferente do violão”.
*Jorge fecha o papo revelando que tem dois violões nacionais “que são os melhores”, um Giannini e um Di Giorgio.
Trechos da reportagem Jorge Ben: Meu sonho é Ser Presidente, não creditada, publicada na edição de março de 1978 da revista POP.
A decepção com África-Brasil*
“O lançamento de meu disco África-Brasil, no começo de 1977, foi a maior falta de respeito profissional. A Phonogram lançou o disco sem me consultar – eu estava na Europa, na época, e eles não quiseram nem saber. Mandaram ver, modificando muita coisa. Até a capa não foi a que eu tinha escolhido – essa que está nas lojas é horrível.”
*Reclamando, aliás, dessa precariedade dos estúdios, Jorge afirma, sobre o ambiente de gravações: “Temos, no Brasil, apenas material humano bom”.
Lembranças de Tokyo
“Em 1973, por exemplo, cantei no Japão para um teatro lotado só por japoneses: todos sentadinhos, comportados, esperando o show começar. Mas logo eles estavam batendo palmas no ritmo, até cantaram comigo o coral de Zazueira, imagine! No fim, subiram no palco, dançaram. Uma festa! Curti muito aqueles carinhas.”
Presidente / Rei de um reino “cheio de flores”
“Além do futebol, eu sonhava em ser advogado, profissão importante… Eu gostaria de ser rei de um reino cheio de flores, onde criança nenhuma tomaria injeção. Presidente? Gostaria de ser, sim. Mas presidente do Mengo. Nuns dez anos chego lá. E aí o Mengo vai ser sempre o melhor.”
Trechos de Salve Jorge! – Seu Som Eleva o Astral e e dá uma Sensação de Gol, reportagem publicada por Daisy Cury de Abreu na revista Ele Ela, em janeiro de 1976, na edição 81.
Louco por natureza
“Não bebo e não fumo. Meu barato é futebol e música. Além da praia, é claro. Bebo no Natal e no Ano Novo. Mas uma taça de champanha me faz entrar em órbita. Sou louco assim, por natureza.”
Rosa, a musa de Mas, Que Nada!.
“Quando vim para zona sul morei na República do Peru (rua de Copacabana que desemboca na orla da praia). Lá tive a minha primeira turma de violão. Depois, quando fiz Por Causa de Você, Menina, eles me ajudaram muito. Telefonavam para as rádios pedindo a música. Como era uma turma muito grande, eu era tocado toda hora no rádio. Lá também morava a minha primeira musa – a Rosa – ela vivia falando “mas, que nada, rapaz!”, e me inspirou a fazer a música.”
Melhor ser alegre que ser triste.
“Quando não estou alegre, procuro ficar. Não adianta ficar triste. Porque só vai atrapalhar, entendeu? Não adianta nada. Mesmo que eu esteja triste por dentro, tento ficar alegre. Porque a tristeza só vai ser negativa – e não vai resolver nada!”.
São Paulo, selva de pedra,
“Está muito difícil morar em São Paulo. Só mesmo trabalhando muito. Até os paulistas já não estão aguentando mais. Estão saindo do centro, procurando outro lugar nas redondezas para morar. Mesmo as firmas, como a Phonogram, estão se mudando, a procura de um lugar retirado, mais humano. Onde eu moro ainda á bonito. Ainda escuto passarinho e tem muito verde. Moro no Ibirapuera. À tardinha, escuto ronco de avião, que eu gosto e me faz bem.”
Madureira, terra do samba.
“Nasci na terra do samba, que não é Vila Isabel, mas Madureira. Fui garotinho para o Rio Comprido. Me lembro bem de minha infância. Era um menino pobre, não tinha luxo, mas tinha o amor de meus pais. Tinha o que eles podiam me dar. Jogava muita bola, brincava no morro, dançava no carnaval, Graças a Deus, agora estou tentando retribuir tudo a meus pais, quando posso.”
O método Patrício Teixeira
“Meu primeiro violão ganhei com o sacrifício de minha mãe. Ela tocava violão e meu pai era sambista. Quando entrei para o Exército, ela me deu de presente o violão e o método que ela usava. Um método antigo demais, chamado Patrício Teixeira. E eu comecei sozinho com aquele método. Como gostava do instrumento, foi fácil e rápido aprender. Naquela época eu pensava: que bacana a gente cantar e se acompanhar!”
João Gilberto, às dez da noite.
“Também fui influenciado pelo João Gilberto, meu ídolo. Achava bacana o estilo dele tocar violão. Eu dizia para os amigos: surgiu um cara aí muito bacana e tal. E a gente ficava esperando para ouvi-lo no rádio. Só tocava na Tamoio depois das 10 da noite, e a gente ficava esperando para curtir o som dele.”
Babulina, a origem.
“Meu irmão mais velho, oficial da Marinha, viajava muito. Certa vez, ele foi para os Estados Unidos. Na época, era aquela empolgação toda pela música americana, pelo rock e outros bichos. Então ele trouxe para mim um disco que estava na onda, Bob and Lena (na verdade, Bop a Lena, sucesso de Ronnie Self) e uma camisa que trazia o nome da música. Eu cantava isso, dava a entender que era ‘Babulina’ e usava a camisa. Então o apelido pegou, na Tijuca e no Rio Comprido.”
Jorge coroinha, seminarista e alquimista.
“Quando era garoto, lia alguns livros de meu avô, que era rosa cruz, e comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho. Desde pequeno, estive ligado com a arte hermética, embora não soubesse bem o que significava. Quando estive em Paris, comecei a pesquisar livros sobre alquimia. Andava pelo Quartier Latin procurando livros esotéricos. Tem uma livraria muito famosa no Boulevard Saint-Gerrmain, a Livraria Ariete. Você está lá e de repente encontra um filósofo, escritor ou um professor da Sorbonne procurando o mesmo livro que você. É bacana isso. Acabei fazendo amizade com o livreiro, e ele me deu muitas dicas. Na Europa há a facilidade de obter informação, não é? Quando descobri que na arte hermética também existe música, quis fazer uma alquimia musical. Daí saiu o A Tábua de Esmeraldas e agora o Solta o Pavão, que é uma continuação do Tábua. Solta o Pavão eu fiz em homenagem ao pavão real. Sempre gostei dessa ave, e na arte hermética ele representa assim como um descobrimento, entendeu? Dizem que quando se solta o pavão é porque se achou uma coisa maravilhosa, um tesouro.”
Filho de Ogum.
“Gosto de prestar homenagens através da música. Jorge da Capadócia é para homenagear São Jorge. Sou filho de Ogum, São Jorge. Além de santo, é para mim um ídolo. Acho ele muito bacana. Não só por sua história, pelos momentos difíceis que passou, mas também pela nossa amizade. Até na música eu trato o Jorge com muita intimidade. Como se ele estivesse presente, entendeu?”
Daysy pergunta como Jorge escreveu O Circo Chegou, do álbum epônimo de 1969.
“O palhaço para mim é uma figura que amo. Para mim é o grande herói do circo. Quando vou a um circo, vou principalmente para ver o palhaço. Eu imaginei um palhaço, e ele tinha uma mulher sensacional, incrível, que sabia de tudo o que acontecia. Adivinhava e segurava todas as barras. Sempre na dela, olhando tudo com muita sabedoria. Eu pensei: uma mulher tão incrível como Daisy só pode ter um homem que come raios laser.”
Compor para você é como espirrar, como defendem alguns, pergunta Daysy?
“Não é bem assim. Para compor eu sinto como se uma coisa começasse a martelar em minha cabeça. Às vezes, uma coisa simples, uma frase de um amigo, uma palavra que fica na minha cabeça e uma coisa que começa a se criar. De repente pego o violão e sai a música. Minhas músicas têm sempre uma história. Coisas que aconteceram comigo, que eu presenciei ou vivi. Uma coisa simples pode me inspirar. Só não consigo fazer música encomendada. Aí não sai mesmo. Antes de tudo, tenho que sentir. Não é como uma prova que se estuda para fazer tudo certinho. Eu sinto e faço um arranjo daquilo tudo, da melhor maneira possível que eu possa interpretar. Tenho o meu estilo e estou acostumado com ele. Quando estou compondo sei a minha linha de ritmo e melódica. Estou com uma coisa na cabeça. Quero fazer uma música universal. Todo mundo vai curtir e entender. Normalmente, gosto de todas as minhas músicas. Mas a minha preferida é Mas, Que Nada!”
O que você pensa das mulheres de hoje, mais descontraídas, falando gírias, trabalhando, questiona a repórter?
“Mas isso é da época. É o modernismo atual. Eu concordo com elas. Poxa, não pode cortar a onda. Nós estamos quase no século XXI, e todo mundo está mudando ou se dando conta da mudança. As mulheres de hoje são bem diferentes das do meu tempo de garotinho. Para mim, mulher pode fazer de tudo. Mas tem uma coisa, tem de ser feminina”.
Daysy pergunta o que Jorge ouve em casa. Ray Charles, James Brown e Stevie Wonder, a resposta.
Pinga-fogo: para fechar a conversa, a repórter pede veredictos sobre alguns colegas de ofício.
Gilberto Gil?: Maravilhoso, um cara que eu gostaria de ser!
Milton (Nascimento)?: Está prestes a encontrar um tesouro.
Caetano (Veloso)?: É a ternura!
Gal (Costa)?: Gostaria que fosse minha namorada.
Colocando o pinga-fogo de escanteio, talvez porque o assunto cobre maiores explicações, Daysy pergunta: “Simonal ainda é seu amigo?”. Jorge Responde, de maneira sucinta.
Acho o Simonal um cara muito bacana. Ele, aliás, foi o primeiro cantor a acreditar em mim como compositor.
Você não ficou decepcionado com ele? Não acha que ele se tornou um mau-caráter (Daysy esmiuça a polêmica que, até então, 1976, ainda não havia silenciado, enquanto Simonal definhava artisticamente).
A mim ele nunca decepcionou. Não que ele fez um troço, assim, feio. Não consigo achar nada feio em ninguém. Gosto de todo mundo. Tenho uma filosofia de vida. Uma filosofia meio barata, mas com senso de humor e que eu acho muito bacana: ‘Jacaré tem que ser malandro, porque quando não é malandro vira bolsa de madame’. Sabe o que quer dizer? Não se meta com a vida dos outros, se não quiser que os outros se metam com a sua vida. E é assim que eu sigo.”
Nota triste, que consta no rodapé da reportagem: “Recado para o Jorge: depois de tanto trabalho e de ter uma entrevista tão simpática, aconteceu uma zebra. A fita do gravador pifou e só gravou a metade de um lado. Foi muito azar, mas não há de ser nada. Vou à forra! Um beijo”, afirma Daysy.
Voa Voa Jorge, Jorge Voa – o alquimista voltou. reportagem de Ruy Fabiano para o Jornal de Música, publicada em janeiro de 1978
Música caipira, chorinho, samba e Black Rio,
“Às vezes, eu estou sozinho em meu apartamento de São Paulo e ligo o rádio de madrugada para ouvir aquelas duplas caipiras. Acho incrível aquela transação deles. Chorinho, que agora é moda, ouço desde pequeno, pois meu pai é velho seresteiro. Sou do Salgueiro, e minha ligação com o samba é também antiga. Nada disso impediu que eu me interessasse pelo rock e pelos diversos ritmos que entraram e saíram de moda. Sempre participei de bailes e embalos de subúrbio, essas coisas que hoje em dia resolveram rotular de Black Rio.”
Fuga da Guerra do Vietnã.
“A minha primeira experiência internacional foi em 1965, quando o Itamaraty enviou alguns músicos, entre eles o Sergio Mendes, em missão cultural aos Estados Unidos. Fui incluído e ganhei uma bolsa para estudar música. Não cheguei a fazer o curso, pois não falava inglês. Não fiz muita coisa por lá, porque fiquei pouco tempo. É que para trabalhar por lá era necessário adquirir o Green Card, e acabei tendo que me alistar no Exército Americano. Fiz isso por pura formalidade, para conseguir trabalho, só que acabei convocado para ir ao Vietnã e tive que voltar às pressas.”
A passagem pelo festival Midem, em Paris
“Quando subi ao palco e vi aquelas pessoas seriíssimas, engomadas, pensei ‘o que é que eu faço agora?’. A minha sorte é que Mas, Que Nada! era sucesso com o Sergio Mendes e todo mundo conhecia. Bastou eu começar a cantar para sentir que todo mundo tava na minha. Fui bisado, e a partir dali choveram propostas de trabalho”.
De novo, a decepção com África-Brasil (e também com Solta o Pavão) e a partida para a Som Livre.
“Os meus últimos LPs – Solta o Pavão e África Brasil – não saíram com a qualidade técnica que eu esperava. O último, então, foi demais. Tive o maior cuidado com as gravações, já sabendo das limitações do estúdio Havaí, onde o disco foi feito. Queria participar da mixagem e já tinha apresentado sugestões para a capa. Pois bem: quando cheguei de viagem encontrei o disco pronto, mal mixado, com uma capa que não tinha nada a ver com o que eu queria. Mas isso tudo é o de menos. O mais grave é que, pelo contrato da Phonogram, não posso regravar nenhuma das minhas músicas num prazo de 10 anos, contados a partir do momento em que eu deixei a empresa. Quer dizer, a música é minha, mas eu não posso cantar. Se eu quiser regravar País Tropical ou Mas, Que Nada!terei que esperar até 1987. Assim, fui pra Som Livre, que me apresentou uma proposta bastante interessante: um contrato de um disco, sem qualquer exigência, podendo ser renovado, se não houver problemas.”
A reverência do público japonês
“Uma coisa incrível é a plateia japonesa. É impressionante a musicalidade deles. E batem palmas acompanhando o samba sem atravessar o ritmo em nenhum momento. Lá, tudo que eu cantava dava certo. Desde o Hino do Flamengo até Cidade Maravilhosa.”
Jorge reitera sua atração pela alquimia como coisa antiga, despertada desde os tempos remotos em que estudava em colégio de padres e chegou a ser seminarista.
“Uma coisa que sempre me fascinou foram os vitrais de igreja. Certa vez, lendo sobre aquilo, encontrei referências aos alquimistas. Fiquei curioso, e tendo o que encontrei sobre o assunto – uns livros velhos de meu avô, que era rosa cruz – li com interesse. Cheguei mesmo a conversar com alguns filósofos franceses hermetistas, mas não me filiei a nenhuma seita. Há muito mais coisas que gostaria de saber, porque a alquimia tem muito a ver com música. Por exemplo: todo alquimista – e geralmente eram homens de algumas posses – contratavam um menestrel para decorar suas fórmulas. Quando a memória falhava, o trovador cantava a fórmula e resolvia a situação, Meu interesse pelo assunto, embora grande, é exclusivamente amadorístico”.
Trechos da reportagem Jorge Ben foi um Sucesso em Nova Iorque, não creditada, publicada na edição de abril de 1979 da revista Música.
Studio 54 versus Xenon
“Eu dei um show grandioso numa discotchèque. Foi uma festa. Mas não foi na Studio 54, como todo mundo anda falando, foi na Xenon, rival da 54. Ciraram essa discotchèque porque a 54 costuma barrar as pessoas, mesmo que a casa não estivesse cheia. Eu fui convidado para essa festa porque o Ricardo Amaral fez um convênio com a Xenon de levar gente para lá e de trazer o pessoal de lá para a Hippopotamus. E o primeiro cara que ele convidou fui eu. Fiquei contente porque pela primeira vez eu me apresentava em Nova Iorque e numa casa conceituadíssima como a Xenon. A recepção foi ótima. Discotchèque cheia. Logo no começo as pessoas estavam dançando aí o locutor me apresentou daquele jeito deles ‘ladies and gentlemen…’. As pessoas pararam de dançar e chegaram mais perto para assistir. Na terceira música ninguém resistiu, todo mundo caiu na dança até o final do show. Foi 1 hora e 40 de pauleira, eu cantei tudo, e todas as músicas em português. Cantei País Tropical, Banda do Zé Pretinho, Mas, Que Nada!, Chove Chuva, Fio Maravilha etc. De Nova Iorque eu fui a Los Angeles porque fui convidado para conhecer a gravadora AM Record – que foi estúdio de filmagem do Chaplin. Futuramente devo voltar lá para fazer um disco nessa gravadora. Já ficou tudo acertado.”
Efervescência nova-iorquina
“Em Nova Iorque tem de tudo. É um lugar eclético. Existem muitos bares com música ao vivo. Num barzinho só tem jazz, no outro rock, no outro blues. Tem também o funk – música mais pro lado dos negros. É um outro ritmo para dançar. O funk deverá ser a música do futuro. As multinacionais já estão programando sua entrada no mercado para daqui a dois anos – tempo que as gravadoras prevêem que a discotchèque vai permanecer enquanto modismo.”
O preconceito inerente aos movimentos
“Já passei por vários movimentos, na Bossa Nova existia um certo preconceito contra mim, o pessoal achava que eu não era muito Bossa Nova e eu mesmo me sentia muito preso. Era um negócio que eu não conseguia acompanhar muito bem. Um dia eu fui convidado pelo Roberto Carlos para cantar no Jovem Guarda. O programa era no domingo. Na segunda-feira, quando fui me apresentar no Fino da Bossa, programa do qual eu participava toda semana, fui barrado porque eu tinha ido ao programa do Roberto. Veja só, e isso era porque eram da mesma emissora (a TV Record). Depois os baianos me procuraram, através do empresário Guilherme Araújo, me convidando par fazer parte de um novo movimento que iria surgir, o Tropicalismo. ‘Sua música vai se encaixar direitinho nesse movimento. A Tropicália tem tudo a ver com você’, disse o Guilherme. Aí eu fui só para conhecer, gostei e resolvi ficar. Foi legal por ter sido mais um avanço na minha música. Tudo isso permitiu uma abertura no meu trabalho. Se eu não tivesse passado pela Jovem Guarda ficaria preso à Bossa Nova. Eu prefiro como está hoje onde existem várias tendências, porque esse negócio de movimento cria muito preconceito. A abertura de hoje é válida, na medida em que enrique a música popular brasileira.”
Trechos de Rod Stewart Plagiou Jorge Ben, reportagem da revista Música, não creditada, de julho de 1979 (matéria que repercute o processo de plágio movido contra Do You Think I’m Sexy, de Rod Stewart, acusada de ser um plágio de Taj Mahal).
“Coincidência musical pode existir. Uma pessoa ouvindo muita coisa, não atual, já fica difícil. Se você está acostumado a ouvir muito músicas antigas, de dez ou 20 anos atrás, então, pode até acontecer. E há perigo de todas as formas, no meio da música e até mesmo no refrão. Taj Mahal foi no refrão, o que é mais forte. Vejo isso como o próprio compositor disse que foi: uma ‘coincidência musical’. Só que depois ele já mudou de ideia, falou que não foi de sua autoria a música, e sim do seu baterista (no processo, Rod deu essa explicação), doando, inclusive, os direitos para o Unicef. Agora, se fosse eu ter feito uma música parecida com a de um compositor estrangeiro, ou mesmo qualquer outro compositor brasileiro que fizesse isso, ficaria logo desmoralizado. Nosso povo ia malhar e repudiar. Graças a Deus não fomos nós que fizemos isso, nem qualquer outro compositor de expressão, senão seria fim de carreira. Música de folclore, de domínio público, a gente pode gravar e pôr o nome. É a primeira vez que acontecesse isso comigo. Não estou muito chateado. Realmente, Taj Mahal é o tipo de música que todo o mundo está querendo fazer. Ela já tem cinco anos e eu sempre tive fé nela. Está (por conta da polêmica) sendo sucesso novamente.”
Gilberto Gil, em defesa de Jorge, diz, na mesma reportagem:
“Qualquer operário brasileiro, montado num andaime, trabalhando, assobia e acompanha o refrão de Jorge Ben, podendo até mesmo comentar: ‘Bem, isso aí até eu mesmo faria, sem ser músico’. E seria até verdade, porque é uma coisa… Uma música bem brasileira. Bem feijão com a arroz. Mas Rod Stewart não! Ele não faria, e não fez.”
MAIS
Leia também, na íntegra, entrevista de Jorge Ben Jor publicada, em 2009, pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches na revista Trip.
Veja parte do MPB Especial Jorge Ben, atração da TV Cultura, dirigida por Fernando Faro, que foi ao ar em 1972.
Descobri esta página agora e quero agradecê-lo. Jorge Ben(e não Ben Jor) é um dos meus maiores ídolos e é quase impossível achar algo que contenha entrevistas com ele…