Os vetos do presidente Jair Bolsonaro à Lei Aldir Blanc 2 e à Lei Paulo Gustavo, as duas principais novidades no fomento à cultura no país, representam, além de um evidente esforço de perseguição ao setor artístico, uma demonstração de admirável burrice administrativa. E essa ignorância já pode ser demonstrada com números. Em vigor em 2020 e 2021 ainda como uma legislação de emergência cultural, a Lei Aldir Blanc injetou R$ 3 bilhões no setor e tornou-se uma das responsáveis pela criação de 855,5 mil postos de trabalho no segmento da cultura no ano passado – o crescimento do número de vagas, de 13% no ano (acima, portanto, dos 11% da economia em geral) foi detectado este mês pelo Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural a partir de dados da PNAD Contínua.
O forte impulso à oferta de emprego na economia criativa no 4º trimestre de 2021 pode ser atribuído, parcialmente, ao arrefecimento da pandemia, mas isso só se consolidou mesmo em 2022 e não haveria um princípio de retomada no setor se ele já não estivesse sendo oxigenado durante os meses anteriores: uma peça, um show ou um filme não surgem do nada. A única fonte contínua e consistente de investimento público no setor veio da Lei Aldir Blanc, que criou nichos produtivos novos por todo o País – como o novo cinema da Amazônia.
Conforme o levantamento do Observatório Itaú Cultural, 2021 se encerrou com 7,5 milhões de trabalhadores empregados na economia criativa (que engloba atividades como cultura, design, moda, gastronomia, comunicação, arquitetura, entre outras), quase um milhão a mais do que em dezembro de 2020, quando eram 6,6 milhões de trabalhadores alocados.
Em 2019, cerca de 6% do total de ocupados no País (por volta de 5,5 milhões de pessoas) atuavam no setor cultural (segmento responsável, àquela altura, por 2,7% do PIB nacional). Segundo especialistas como Bruno Moretti e Marcos Souza, somente o período de vigência da Lei Aldir Blanc de emergência cultural, em um cenário de estagnação geral, é capaz de explicar essa bolha de virtude.
É possível, caso Bolsonaro (felizmente) fracasse, projetar uma espécie de renascimento para o setor cultural nos próximos anos com a adoção das duas leis. Historicamente, os recursos para o setor sempre foram ínfimos, nunca passando de 1% do Orçamento da União. Com a derrubada dos vetos de Bolsonaro, a ação emergencial que já deu alento à área ganhará agora o escopo de permanente por meio da Lei Paulo Gustavo (que direciona R$ 3,86 bilhões do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura a estados e municípios para fomento do setor) e da Lei Aldir Blanc 2 (que destina outros 3 bilhões para a cultura em uma política de caráter permanente). Nunca se viu nada parecido em termos de política de Estado no Brasil.
Os gastos diretos do governo federal com cultura, segundo o Portal da Transparência, vêm desabando progressivamente desde 2018, quando representaram cerca de R$ 1 bilhão. Caíram para aproximadamente R$ 600 milhões no ano passado. Este ano, 2022, estão até agora em R$ 109 milhões. É uma clara política de desarticulação de um setor produtivo e a base dessa política é simplesmente a da guerra ideológica, não há nenhum fundamento econômico ou estratégico nisso.
A blitz de guerra cultural do bolsonarismo levou os mais diferentes setores a um colapso quase completo. Mesmo as áreas mais organizadas, como era o setor audiovisual, estão em situação de calamidade, embora a publicidade tente fazer parecer o contrário, o cenário aponta para uma devastação. As pequenas iniciativas, abandonadas pelas políticas públicas, definham – por exemplo, o projeto Ponto Cine Guadalupe, na Estrada do Camboatá, no Rio de Janeiro, que está com as portas fechadas após 16 anos atuando como a primeira grande sala popular de cinema digital do Brasil exibindo apenas filmes brasileiros. O Ponto Cine chegou a exibir cerca de 550 filmes para 350 mil pessoas, mas a política de cabide da Ancine bolsonarista não o alcançou.
Nenhuma das duas leis, Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, aprovadas por ampla maioria nas casas legislativas, tira recursos de ou pressiona gastos com saúde, educação, Santas Casas, agronegócio ou investimentos públicos. Suas fontes de recursos já são pré-existentes, mas agora deverão ser recursos carimbados, com destinação correta. Esse é o grande temor de um Estado que trata de forma displicente aquela atividade que representa seu próprio espírito, sua alma, seu elã fundamental.