Alexandre da Cunha
Alexandre da Cunha, "Coverman", 2001 / 2013. Performance. Foto: Divulgação

Frente a um mundo em colapso, algumas produções artísticas buscam “revirar nossas certezas, tratar daquilo que é urgente e nos colocar diante de novas perspectivas”, explica Solange Farkas, fundadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil (VB). É dialogando com esta ideia que se constrói REVIRAVOLTA, em cartaz até 10 de setembro em Vitória, no Espírito Santo. Reunindo produções audiovisuais que fazem parte do acervo do VB e que ecoam o momento em que vivemos, o projeto acontece simultaneamente em dois espaços da capital capixaba: enquanto o Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) recebe Reviravolta – Arte e geopolítica; a Galeria Homero Massena apresenta Reviravolta – Corpo e performance.

O convite para a realização da mostra veio em 2019, feito pelo governo do Espírito Santo. A proposta era de uma itinerância da 21ª Bienal Sesc_Videobrasil. Porém, em decorrência da pandemia, o projeto ficou parado. Nesses dois anos, outras reviravoltas se estabeleceram no mundo: os embates políticos tomavam outro corpo e a crise sanitária intensificava uma série de colapsos já latentes no que tange às desigualdades sociais, de gênero, etnia e raça — em especial quando tratamos de países do Sul Global, aqueles à margem do capitalismo central e dos grandes eixos de poder econômico e geopolítico. 

“Quando finalmente retomamos, o clima político no país havia se deteriorado de tal forma que sentimos a necessidade de mostrar um panorama da produção do Sul mais focado na vocação política que a atravessa desde sempre, e cada vez mais”, explica Farkas em entrevista à arte!brasileiros. Assim, alteraram a configuração de REVIRAVOLTA: “Em lugar apenas da 21ª Bienal ou dos trabalhos premiados no evento, resolvemos tomar como base das curadorias o Acervo Videobrasil como um todo, buscando nele manifestações diversas e potentes do desejo dos artistas do Sul de criar reviravoltas na forma de fazer arte e de pensar o mundo”.

Mas de que forma se dá esse giro na maneira como entendemos arte e vida? “Vindos de países que têm em comum um passado colonial – ou seja, uma experiência fundadora de submissão intelectual, política e cultural –, os artistas do Sul oferecem uma perspectiva necessariamente outra, digamos, se pensarmos nas narrativas oficiais que seguem se sobrepondo a dissidências e antagonismos”, explica Farkas. Duas obras expostas no MAES evidenciam como esse conceito toma corpo. Em About Cameras, Spirits and Occupations: a Montage-Essay Triptych, o grupo Alto Amazonas Audiovisual articula olhares indígenas e não indígenas para rever a posição tradicional de poder do etnógrafo sobre o Outro; já a performance L’Arbre D’Oublier, de Paulo Nazareth, retoma o ritual de ‘apagamento da memória’ a que homens africanos escravizados eram submetidos antes de partir para a América, ao que o artista volteia 437 vezes a Árvore do Esquecimento – “é uma imagem quase gráfica de inversão de perspectiva”, compartilha Farkas.  

Hoje, as exposições no MAES e na Galeria Homero Massena apresentam um largo conjunto de obras em diálogos possíveis com o momento atual, além de materiais de apoio, como depoimentos de artistas e a série Videobrasil na TV, que aprofunda uma variedade de conteúdos a fim de complementar a experiência das mostras. Assim as obras do Acervo Videobrasil são exibidas pela primeira vez em conjunto significativo na capital do Espírito Santo. O projeto vai de encontro ao desejo histórico da instituição de acessar territórios fora dos grandes eixos de poder, não só no mundo (o Sul Global), mas também no próprio país (para além do eixo Rio-São Paulo). “A interlocução proposta com o Videobrasil em Vitória estimula um intercâmbio necessário para o fortalecimento das redes, dos artistas e suas produções para além das fronteiras dos territórios”, afirma Nicolas Soares, diretor do MAES, no release do projeto.

Frentes de ação

O convite feito pelo Governo do Espírito Santo ao Videobrasil se estendia a dois espaços expositivos da capital capixaba. “Fizemos, então, o exercício de imaginar dois recortes diferentes do Acervo que se adequassem às características de cada um deles – e, ao mesmo tempo, fossem complementares, no sentido de oferecer ao público de Vitória um panorama significativo do que é a coleção e de aspectos importantes da produção do Sul geopolítico”, conta Solange Farkas, que também assina a curadoria de REVIRAVOLTA

Enquanto o MAES apresenta um espaço expositivo mais aberto e uma proposta curatorial contínua ligada às linguagens contemporâneas, permitindo a exibição de trabalhos com grande presença espacial e representativos da produção recente em vídeo e instalação, a Galeria Homero Massena tem uma característica mais intimista – “é um espaço mais concentrado de fruição”, explica Farkas – e tornou-se mais propícia a um panorama retrospectivo de uma linguagem específica: a performance, “muito presente no acervo por causa da importância que o Videobrasil deu a ela desde as edições iniciais, nos anos 1980”, explica a diretora do VB. 

Assim, Arte e geopolítica no Acervo Videobrasil, no MAES, parte da cartografia desenhada por duas recentes edições da Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017 e 2019). A exposição apresenta trabalhos dos brasileiros Aline X (Minas Gerais), Alto Amazonas Audiovisual (Amazonas e Ceará), Ana Vaz (Distrito Federal), Gustavo Jardim (Minas Gerais), Luciana Magno (Pará) e Paulo Nazareth (Minas Gerais); e dos estrangeiros Bakary Diallo (Mali), Daniel Monroy Cuevas (México), Enrique Ramírez (Chile), Seydou Cissé (Mali) e Tiécoura N’Daou (Mali), além do coletivo indígena formado por Ana Carvalho, Ariel Kuaray Ortega, Fernando Ancil e Patrícia Para Yxapy (Brasil e Argentina).

Surgem na mostra práticas artísticas que borram as fronteiras entre arte e ciência e se constroem no campo do interdisciplinar, de forma a ampliar as concepções de mundo, bem como um reforço das práticas comunitárias como possibilidades de reconstruir o mundo a partir de coletividades ligadas a identidade e afeto. “A necessidade de fazer reverberar em toda a sua potência histórias não hegemônicas dá ao vídeo um fôlego narrativo que antes era privilégio do cinema. Ao mesmo tempo, e quase na mesma medida, os artistas mobilizam o poder da imagem para criar espaços e metáforas”, escreve Farkas em texto sobre a mostra.

Em paralelo, 200 registros de performance compõem Corpo e performance, na Galeria Homero Massena. A seleção é resultado de uma imersão nos registros de performances produzidos pelo Videobrasil ao longo de seus 40 anos – incluindo happenings, intervenções musicais, vídeo performances, entre outros. “Nos países do Sul Global, em meio à violência de Estado e à herança colonial, artistas plasmam corpo e imagem em uma produção que é signo de vida contra as políticas da morte. No programa principal desta exposição, eles manobram de formas diversas o repertório da performance para trazer para o próprio corpo o enfrentamento de temas urgentes, como racismo estrutural, terrorismo estatal e violência de gênero”, destaca Farkas. 

A lista de artistas e coletivos participantes da mostra, vindos de diferentes cantos do globo, é vasta. Entre os internacionais, estão: Aya Eliav e Ofir Feldman (Israel), Coco Fusco (Cuba / Estados Unidos), Marcello Mercado (Argentina), Melati Suryodarmo (Indonésia), Michael Smith (Estados Unidos), Steina Vasulka (Islândia) e Stephen Vitiello (Estados Unidos). Já entre os brasileiros: Alexandre da Cunha (Rio de Janeiro), Ayrson Heráclito (Bahia), Chelpa Ferro (Rio de Janeiro), Eder Santos (Minas Gerais), Felipe Bittencourt (São Paulo), Frente 3 de Fevereiro (São Paulo), Lenora de Barros e Walter Silveira (São Paulo), Luiz de Abreu (Minas Gerais),  Marco Paulo Rolla (Minas Gerais), Otávio Donasci (São Paulo), Paula Garcia (São Paulo) e Waly Salomão e Carlos Nader (São Paulo). 

“Há ainda na exposição um programa especial dedicado a artistas capixabas com obras performáticas: Charlene Bicalho, Castiel Vitorino Brasileiro, Geovanni Lima, Fredone Fone, Marcus Vinícius, Natalie Mirêdia e Rubiane Maia. Parte significativa destes trabalhos expostos passarão a integrar o Acervo Videobrasil, que além de cuidar de sua salvaguarda assume o compromisso de dar maior visibilidade e circulação às obras e aos artistas”, complementa a curadora. 

Apesar de ainda não ter previsão de realizar projetos semelhantes em outros estados do País — especialmente pelo atual foco do VB na próxima Bienal Sesc Videobrasil, que acontece em 2023 em São Paulo e celebra 40 anos de atividades da associação — Farkas não descarta a possibilidade. “O acervo nos oferece possibilidades curatoriais quase ilimitadas, de criação de programas e exposições que, sim, podem e devem viajar, alimentando circuitos novos e deixando que a produção artística do Sul global alimente novas gerações de artistas. Estamos abertos.”

SERVIÇO

REVIRAVOLTA
Arte e geopolítica no Acervo Videobrasil
10 de junho a 10 de setembro
MAES: Av. Jerônimo Monteiro, 631 – Vitória (ES)
Funcionamento: terça a sexta, das 10h às 18h; sábado, das 10h às 16h

REVIRAVOLTA
Corpo e performance no Acervo Videobrasil
10 de junho a 10 de setembro
Galeria Homero Massena: Rua Pedro Palácios, 99 – Vitória (ES)
Funcionamento: segunda a sexta, das 9h às 18h; sábado, das 13h às 17h 

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