Às 6h34 da quinta-feira, 12 de maio de 2016, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), anunciava a abertura do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, depois de 20 horas de sessão. Consolidava-se assim a maior ameaça à democracia desde o golpe civil-militar de 1964.
Fogos de artifício cruzaram o céu gigante de Brasília. Para alcançar o Palácio do Planalto foi preciso acessar as ruas paralelas à Esplanada dos Ministérios, fechada desde o início da votação, na quarta-feira, 11. Uma grade continha a multidão que foi prestar solidariedade a Dilma.
Sob Sol quente, jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos se acotovelavam para tentar entrar no prédio que guarda a sede do poder. A dificuldade de chegar à notícia anunciava o que estava por vir: em poucas horas a troca de manche se estabeleceu. Refletiu-se nos desmandos de podres e pequenos poderes, desde o segurança da porta do Palácio até a extinção de ministérios fundamentais.
A presidenta chegou pela garagem, sem que pudesse ser vista pela população que se aglomerava diante da rampa. Do lado de dentro, em uma pequena sala, fotógrafos e câmeras disputavam espaço para registrar a imagem do anúncio à imprensa. Um pequeno corredor comportava um grupo de mulheres que levavam no rosto o cansaço pela madrugada em claro e a desesperança de quem enxerga os sinais do retrocesso de direitos. Portavam flores para Dilma.
Outras mulheres cercaram a presidenta durante a mensagem sobre seu afastamento. Na linha de frente estavam as ministras Tereza Campello, do Desenvolvimento Social; Eva Chiavon, da Casa Civil; Eleonora Menicucci, das Mulheres; Izabella Teixeira, do Meio Ambiente; Kátia Abreu, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; e Nilma Lino Gomes, da Igualdade Racial, além de senadoras e deputadas.
Ao entrar, a presidenta foi aplaudida sob o coro “Dilma, guerreira da pátria brasileira”. Estava abatida pelas semanas tensas que culminaram naquele momento. O mesmo olhar triste compunha a fisionomia das poderosas mulheres ao seu lado e de muitos de seus ministros. Apesar desse clima, Dilma estava firme.
“Na condição de presidenta eleita pelos 54 milhões (de cidadãos e cidadãs), eu me dirijo a vocês nesse momento decisivo para a democracia brasileira e para nosso futuro como Nação”, disse, na abertura do discurso. “Eu já sofri a dor indizível da tortura; a dor aflitiva da doença; e agora eu sofro mais uma vez a dor igualmente inominável da injustiça. O que mais dói, neste momento, é a injustiça.”
As câmeras do Brasil todo (e de muitos países) apontavam para a cena. Dilma finalizou o discurso avisando que não cansa de lutar, que não está sozinha e agradeceu. “Vamos mostrar ao mundo que há milhões de defensores da democracia em nosso País.” Rapidamente se dirigiu ao térreo do Palácio, seguida de seguranças, ministros, deputados, senadores, jornalistas – e de mulheres, sobretudo. Decidiu não descer a rampa. Seria uma imagem que ficaria congelada em um simbolismo equivocado. Dilma está afastada, mas ainda é presidenta do Brasil.
Quis sair pela porta da frente. Com dignidade, um sorriso e cabeça erguida, o primeiro abraço que a presidenta recebeu foi de uma mulher. A multidão cantava palavras de ordem, em vozes predominantemente femininas. Entre as mulheres que aguardavam na saída do Palácio do Planalto estava um grupo de sete companheiras de cárcere que foram torturadas com Dilma durante a ditadura, em 1970, no Presídio Tiradentes, em São Paulo. “Estar hoje com ela é um ato extremamente importante para todas nós”, disse Guiomar Silva Lopes, em depoimento aos Jornalistas Livres. “Nós viemos demonstrar a solidariedade à nossa companheira de luta e queremos reafirmar que vamos continuar junto a ela.”
Como se desse uma volta olímpica no Palácio, Dilma foi seguida pela massa de mulheres, jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e parlamentares. Ia ao encontro das pessoas que a esperavam do lado de lá da grade.
O público segurava cartazes que diziam “Voltaremos”, levava flores e mantinha o punho erguido enquanto cantava “Renova, renova, renova a esperança, a Dilma é guerreira e da luta não se cansa” e “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma”, ou “No meu País eu boto fé, porque ele é governado por mulher”, pedindo “Fica, querida”.
A presidenta encostou na grade e cumprimentou o povo. Nos semblantes uma mistura de alegria por ver pessoalmente a presidenta, pesar pelo golpe e preocupação pelo futuro. “Estou aqui para dar apoio à presidenta Dilma e para presenciar esse momento que eu sinto como se fosse um golpe fulminante e pela perda que eu sinto que vai acontecer, de tudo o que nosso povo recebeu e mudou a vida de tanta gente no País”, disse a brasiliense Ana Zélia, 60 anos. Ela tremia em um misto de emoção e nervoso. “É o fim de uma era. É um momento de muita dor para quem pensa nos menos favorecidos. Eu vim também em nome deles. Para que tenhamos dignidade”, completou.
Em seu discurso na beira da rampa, acompanhada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de suas ministras, Dilma estava agradecida e fortalecida pelo carinho. “Nós mulheres temos uma coisa em comum, nós somos dignas. Quero dizer a vocês que eu lutei a minha vida inteira e vou continuar lutando”, declarou.
Ao terminar o discurso, Dilma se despediu de Lula. Com sorriso cúmplice, o ex-presidente abraçou Dilma. Deu um beijo em seu rosto e ela deitou a cabeça no ombro esquerdo de Lula. E partiram. Ela para o Palácio da Alvorada. Ele para sua casa em São Bernardo do Campo (SP).
Um dia antes do impeachment
Sob a gestão de Michel Temer
Novo figurino
Em poucos minutos, o Palácio do Planalto mudou completamente. Grande parte dos visitantes se retirou. Ficou um grupo de 30 mulheres que se acorrentaram nas grades para protestar contra o governo ilegítimo de Michel Temer. Os seguranças se reposicionaram. Um deles quis impedir uma ministra de voltar ao salão principal. A imprensa se reorganizou para escutar o presidente interino. Servidores que fizeram questão de se exonerar com Dilma limpavam suas gavetas.
Naquela tarde, por volta das 17 horas, o Palácio se vestiu de amarelo para receber Temer e seu ministério de homens brancos. O primeiro protesto enfrentado por ele partiu dos fotógrafos, que cantaram “não vai ter foto!”. Em lugar de gente emocionada, a sala estava tomada por ternos pretos.
Ao comentar a eliminação de ministérios, Temer engasgou e teve que pedir pastilhas. Acabou por reduzir de 32 para 23 pastas, exterminando o Ministério da Cultura e secretarias como Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Pessoas com Deficiência. Escolheu como símbolo o velho “Ordem e Progresso” e como lema “não fale em crise, trabalhe”.
Ao fechar o discurso, Michel Temer evocou Deus para proteger o Estado que, segundo a Constituição, é laico. “O que nós queremos fazer agora, com o Brasil, é um ato religioso, é um ato de religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso País. Por isso que eu peço a Deus que abençoe a todos nós: a mim, à minha equipe, aos congressistas, aos membros do Poder Judiciário e ao povo brasileiro, para estarmos sempre à altura dos grandes desafios que temos pela frente.”
O clima na porta do Palácio do Planalto no momento do discurso de posse de Temer também era oposto ao que se viu pela manhã: policiais reprimiam com gás de pimenta um protesto contra o golpe; três pessoas carregavam a bandeira brasileira vestidas com uniforme da seleção; e dois homens portavam cartazes pedindo a volta da intervenção militar. O futuro do pretérito acabava de começar.