Esqueça tudo o que aprendeu sobre gênero masculino e feminino, identidade de gênero, sexualidade e comportamento. Se há algum tempo nascer com genitália feminina era suficiente para definir uma mulher por uma vida inteira, mesma condição aos nascidos em corpos masculinos, agora não é mais assim. Há mulheres que se identificam como homens, homens que se identificam como mulheres e ainda os que não se identificam com nada ou com tudo. Tem quem se submeta à cirurgia de readequação sexual, tem quem não. Tudo isso tem e não tem a ver com sexualidade. Entendeu?
Pois é, essas e outras formas de compreender a identidade de gênero e um jeito diferente de se apresentar ao mundo estão sendo pensados por algumas das cabeças mais brilhantes da atualidade. O debate já saiu das comunidades específicas e ganhou espaço nas universidades. Mas a questão não se resume apenas ao mundo intelectual. Famílias e escolas estão se confrontando com o assunto por causa da presença de crianças e adolescentes trans.
A transgeneridade é um termo abrangente. Engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos ou papéis convencionais do sexo biológico determinado no nascimento. São as travestis, as drag queens, os cross dresser, os transexuais. Os dados sobre essa população não são oficiais e variam muito. Mas calcula-se que o mundo abrigue entre 3,5% e 10% de transgêneros. As pessoas não transgênero são agora denominadas cisgênero ou cis, prefixo do latim que significa algo como “do mesmo lado”. Podem ser hétero ou não, mas se identificam com o sexo de nascimento.
Mas, afinal, o que é gênero? Para alguns, uma construção social, uma imposição de comportamentos. Portanto, o trânsito entre um e outro é uma possibilidade legítima. Outros apostam na hipótese das distinções cerebrais existentes no organismo feminino e masculino para explicar o que leva uma pessoa a desejar um corpo oposto ao do nascimento.
O assunto é sério para a filosofia. A americana Judith Butler, uma das defensoras da chamada teoria Queer – palavra inglesa que identificava homossexuais na década de 1970 –, traz a ideia de pensar a questão exatamente a partir das pessoas que desconstroem a coerência entre anatomia, identidade, desejo e prática, ampliando o conceito de gênero. O espanhol Paul B. Preciado, também filósofo e ele mesmo um homem trans, partilha da teoria. Em Manifesto Contrassexual, considerada uma das obras mais importantes deste século sobre o assunto, ele defende a ruptura dos estereótipos homem, mulher, homo, hétero, natural, artificial. As propostas de Butler e Preciado evidentemente estão longe de ser um consenso. O universo da transexualidade ainda espanta, surpreende e, não raro, desperta preconceitos.
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A família
A mulher transexual Assucena Assucena, 27 anos, não escapou do primeiro conflito: o familiar. Ela ainda se entristece quando conta as reações do pai ao perceber que algo de diferente acontecia com a filha. “Começamos dizendo que eu era gay, mas mesmo assim ele parou de falar comigo. Era como se eu fosse um pecado.”
Dados de abril divulgados pela Prefeitura de São Paulo explicam o impacto da perda do apoio familiar: até 8,9% da população em situação de rua da capital paulista pertence à comunidade LGBTT, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.
Assucena ainda usava o nome Filipe e era uma figura bastante andrógina quando trocou Vitória da Conquista, na Bahia, pelo curso de História da Universidade de São Paulo. Lá conheceu Rafael, 27 anos, gay, negro, com longas tranças louras e um talento musical impressionante. A grande empatia entre ambos propiciou um daqueles encontros de alma, com discussões profundas sobre história, feminismo, gênero e família que se transformaram em canções. “Enquanto saíam as letras e as músicas, foram saindo também a Assucena e a Raquel Virgínia”, conta Assucena. Em pouco tempo, tinham um disco pronto e a certeza de que era o momento de se assumirem como mulheres transexuais. Em novembro do ano passado, elas lançaram o álbum Mulher, o primeiro da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, com colegas da universidade, uma das mais atraentes novidades do cenário musical paulistano. Uma boa agenda de shows por capitais do País anuncia o futuro da dupla.
Negra, nascida e criada no Grajaú, bairro da zona sul paulistana, Raquel é presença forte. “Sou de uma realidade que os colegas da USP não frequentam e costumo ser a única travesti nos lugares aonde vou. Sou tratada como alguém exótico. Raramente passo uma semana sem ser incomodada por uma questão racial e de gênero.”
Em abril, Raquel foi agredida por um rapaz em um bar na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. “Ele deu em cima de mim, a gente conversou, se beijou e acabou. Mas, 15 minutos depois, voltou e disse que eu devia ter avisado que sou ‘homem’. Como poderia avisá-lo de algo que não sou? E ele tinha conversado comigo, me visto. Na vida de uma travesti, nada é simples. Um beijo pode virar um caso de morte, entende? Se eu não fosse cada vez mais focada e determinada, enlouqueceria.”
“A usp tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por isso, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Hoje não me incomodo”
“A visibilidade é uma área conflituosa. Ainda que a convivência com a temática da identidade de gênero esteja mais comum, trans ainda são vítimas de violência e machismo. A estudante de Filosofia da USP Gabriela Perini Bortoletto, de 22 anos, às vezes se esconde. “Na faculdade é mais tranquilo porque as pessoas têm uma consciência política forte. Mas há momentos em que não me sinto confortável em me expor como mulher, principalmente na rua, à noite.”
“Eu me sinto completamente vulnerável. Os caras me incomodam, não me deixam dançar, conversar. Tem os T-lovers, homem cis com fetiche por trans. Querem saber se fiz ou não a cirurgia de readequação sexual. Não, não fiz. Meu gênero flutua muito, não sigo estereótipos.”
Mesmo dentro da USP, Gabriela evita certos eventos. Não se arrisca, por exemplo, a participar de uma festa na Poli.
O mundo não tem bom facolhimento com os transgêneros. Entre 2008 e 2014, foram assassinadas 1.612 pessoas trans em 62 países, inclusive no Brasil, de acordo com a ONU. Irã, Mauritânia, Sudão, Iêmen e regiões da Nigéria e Somália ainda hoje punem atos homossexuais com a morte.
Gabriela incomoda e sabe que incomoda. “Eu dou um nó na cabeça das pessoas. A minha existência é uma perturbação.” Ciente disso, ela frequentemente faz performances por São Paulo. Em uma delas, ocupou sem permissão o Museu de Arte Contemporânea, o MAC, e cruzou diversas vezes os espaços do museu, caminhando o mais lentamente possível. “Minha ideia era mostrar o que é um corpo de uma pessoa trans dentro de um museu, perturbando a ordem de modo não autorizado.”
No dia a dia, Gabriela enfrenta impasses, como usar o banheiro público. “Já me incomodei com isso, principalmente porque na USP tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por um tempo, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Mas aprendi a não me incomodar.”
No Brasil, os banheiros atendem à divisão tradicional homem-mulher, e se isso aqui ainda passa despercebido, no mundo já é tema de disputa. Nos Estados Unidos, Barack Obama recentemente causou polêmica ao pedir banheiros compartilhados em escolas. A orientação é clara: os transgêneros podem usar banheiros que combinem com sua identidade de gênero, independentemente da anatomia. Os legisladores conservadores, claro, reagiram.
Força feminina
Assim como Assucena, Márcia Dailyn Oliveira da Silva, 38 anos, também se viu rejeitada pelo pai quando a adolescência fez aflorar sua identidade feminina. O clima ficou tão pesado que a mãe, Selma (ex-empregada doméstica que se tornou professora de aeróbica no final dos anos 1970), deu um basta no casamento. A família vivia em Jales, interior de São Paulo. “Devo muito à minha mãe. Nunca precisei me prostituir ou roubar. A coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada.” Além do apoio inestimável, Márcia guarda o orgulho de ser a primeira mulher trans a se formar em balé clássico na tradicional Escola de Dança de São Paulo, da Fundação Theatro Municipal. “Havia professores que me chamavam de Márcio. Alguns coreógrafos me encorajavam a participar de um casting, mas na hora me desprezavam. Falavam que eu era feia e pobre. Mas fui até o fim.”
Ela pretende seguir em frente. Desde 2011, frequenta o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde recebe tratamento hormonal e faz psicoterapia, dois pré-requisitos para a realização da operação de mudança de sexo. É o corolário de um processo de transformação que teve início aos 13 anos, quando começou a tomar pílulas anticoncepcionais por recomendação de transexuais mais velhas. “Aguardo a cirurgia com outras 17 pessoas. Porém o Hospital das Clínicas faz uma por mês. Agora é esperar.”
Enquanto isso, leva a vida entre seu trabalho em uma farmácia de manipulação, na região central da cidade, e sua paixão pelo tablado, hoje circunscrita às aulas que ministra no Núcleo de Dança Nice Leite Ilara Lopes, a sua participação na companhia de dança Uirapuru e aos ensaios de um espetáculo com canções da cantora Maysa, sua musa. “O mundo da arte é instável, ainda mais para mim, e preciso sobreviver.”
“Devo muito à minha mãe. a coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada”
Marcia tem sorte. A busca por um lugar no mercado de trabalho regido pela CLT, a cada dia menor, é outra dificuldade para os transgêneros. Para interferir nesse cenário, a Prefeitura de São Paulo lançou, em janeiro do ano passado, o programa Transcidadania, elogiado em todo o mundo. A iniciativa prioriza a educação, com aulas de cidadania e de formação geral, e um incentivo para concluir os ensinos fundamental e médio. Passado um ano, o programa conseguiu empregar nove transexuais em empresas parceiras, dobrou o número de vagas (de 100 para 200) e reajustou o valor da bolsa concedida por dois anos a quem se compromete a estudar, que agora é de R$ 910.
O orçamento da pasta será também 130% maior do que no ano anterior, atingindo R$ 8,8 milhões. “Implantamos essa política no País que mais assassina travestis e homossexuais no mundo. É uma política pública séria, uma opção corajosa e arriscada, que pode mudar a vida das pessoas, servindo de exemplo para outros municípios e estados”, diz Alessandro Melchior, coordenador de Políticas Públicas LGBTT. Recentemente, a cidade de João Pessoa, na Paraíba, lançou um programa com o mesmo nome e já existem iniciativas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.
O sexo-alvo
Até 1997, as cirurgias de readequação sexual eram proibidas no Brasil. Quem queria se submeter ao processo precisava recorrer a clínicas clandestinas ou a médicos em países como Espanha, Tailândia e Marrocos. Em 2008, o governo brasileiro oficializou apenas a cirurgia de redesignação sexual de homens para mulheres. Em seis anos, até 2014, foram feitos 243 procedimentos cirúrgicos desse tipo em quatro serviços habilitados no SUS.
Há três anos, a rede pública começou também a oferecer a cirurgia de mulher para homem, que é bem mais complexa. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais, que incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, é 18 anos e para os cirúrgicos, 21 – nesse caso, é preciso ter o diagnóstico de transexualidade e um laudo psicológico/psiquiátrico favorável – um documento que é alvo de críticas e muitas discussões.
Léo Moreira Sá não revela a idade. Diz apenas ter mais de 50 anos. Parece menos. “Tenho meus truques.” No entanto, ele não esconde seu passado. “Eu fui a Lu, das Mercenárias, lembra?” De baterista de banda pós-punk a ator, lighting designer e jornalista ativista, Léo é dono de uma rica história de vida. Caçula de oito irmãos, mãe dona de casa e pai funcionário público, ele conta que percebeu sua identidade de gênero ainda criança, aos 7 anos, em São Simão, no interior de São Paulo, onde morava com a família.
Em 1980, Léo começou a cursar Ciências Sociais na USP e a frequentar o cenário musical paulistano. Foi na universidade que teve as primeiras informações teóricas sobre transexualidade. “Li os filósofos franceses, o que me deu o instrumental para lidar com todo o arsenal de emoções que eu sentia. Aquela sensação de não pertencimento. Foi um período de drogas e muita loucura”, ele conta. Em 1984, deixou a banda, apostou na abertura de uma boate em São Paulo, virou traficante e se casou, “no civil e tudo”, com a travesti Gabriela. “Nós éramos famosos, um casal diferente.” Em 2004, acabou a festa. Léo foi preso e passou cinco anos no regime fechado. Gabriela voou para a Europa.
De volta à liberdade, Léo já tinha barba e bigode graças aos hormônios que tomava. A mamoplastia masculinizadora (retirada das mamas), feita no SUS, aconteceu há três anos. “Foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. Não quero mexer no resto. Não tenho nenhuma obsessão para ter pênis. Não vale a pena.”
Vencedor em 2011 do Prêmio Shell pela iluminação do espetáculo Cabaret Stravaganza, da Cia de Teatro Os Satyros, Léo está distante das drogas há 12 anos. “Só tomo testosterona.” Não mudou seu nome de batismo nos documentos e, quando se apresenta com eles, causa espanto. “As pessoas ficam em pânico, me olham daquele jeito, não acreditam porque veem aquele homem de barba, careca, e se perguntam: ‘Como assim?’. Mas é importante que essa pessoa veja um transexual porque, se ela olhar para mim e achar que sou cis, não vai aprender. E eu acho que as pessoas precisam entender que existimos, que somos normais e merecemos respeito.” Com certeza, nada será como antes.
“A mamoplastia masculinizadora foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. não tenho nenhuma obsessão para ter pênis”