O carnaval está no imaginário de Rosana Paulino, 55, desde a sua infância. Atrás da casa de sua avó, em São Paulo, havia uma fábrica de adereços e, na adolescência, ela assistia às escolas de samba na companhia de uma tia e de suas irmãs. Na década de 1980, uma dessas apresentações marcou bastante a futura artista: o último desfile de uma tríade da Mocidade Alegre, sobre a cultura afro, foi dedicado a artistas negros e reverenciava nomes como Heitor dos Prazeres.
“Pela primeira vez eu vi a figura do negro retratada de maneira digna dentro da História. E eu me dei conta de que a arte negra existia porque, até então, no meu universo de criança, havia somente o que vinha da Europa, ou alguém como Portinari, no Brasil. De modo geral, eu só conhecia os chamados gênios da pintura”, recorda-se. “Então, foi uma experiência estética e política muito importante, para a construção de minha identidade.”
Em abril deste ano, Rosana voltou ao universo do carnaval, desta vez como uma das 30 personalidades negras homenageadas pela Beija-Flor de Nilópolis. No Sambódromo carioca, ela representou as artes visuais, sob o enredo Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor, num tributo que incluía ainda Conceição Evaristo e Abdias Nascimento, entre outros. As fantasias da Ala das Baianas – que, segundo ela, são “a alma de uma escola, seu fundamento” – tinham patuás, inspirados em trabalhos seus. “Já quando eu vi o croqui da fantasia, eu chorei, fiquei emocionada, perdi a fala”, conta.
O desfile foi um dos momentos marcantes de sua carreira em 2022, um ano particularmente agitado do ponto de vista profissional. Prestes a completar 30 anos de trajetória artística, Rosana também foi convidada a participar da 59ª Bienal de Veneza, onde até novembro exibe 25 trabalhos, de três séries: Jatobás, Senhora das plantas e Tecelãs. As obras partem de uma investigação da artista, uma leitora atenta das obras do psicanalista e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, acerca de arquétipos femininos.
“Dentro da psicologia tradicional, há uma inundação de Heras, Vênus, Atenas etc., que não conversam com as mulheres negras daqui. Quando eu olho o meu perfil, por exemplo, dentro dessa psicologia calcada numa mitologia europeia, não me encaixo de maneira alguma. Eu sou filha de Ogum com Iansã”, diz. “A construção da psique feminina não contempla as mulheres negras, como eu. Não aparece sequer uma deusa negra, africana. É como se a mulher de origem africana não tivesse psique, não tivesse individualidade. É cruel e absurdo. Parece que não temos direito nem à subjetividade.”
Suas criações apresentadas em Veneza tentam refundar ou mesmo sugerir novos mitos, a partir de novos arquétipos. A série Senhora das plantas, ela afirma, refere-se às mulheres na faixa etária de 30 a 50 anos, ao passo que as Jatobás são as grandes árvores, as mulheres em sua maturidade. “Elas remetem às grandes mães de santo, que conseguiram manter a comunidade negra unida ao longo da História, são as detentoras e mantenedoras do conhecimento, são as nossas avós, na realidade”, afirma.
A ancestralidade, como se vê, está intrinsecamente ligada à produção de Rosana Paulino. Paulistana, nasceu e cresceu na Freguesia do Ó, de onde se mudou há dez anos, para Pirituba, um bairro vizinho. Foi na casa da família, na Freguesia, que aprendeu com a mãe a costurar, habilidade que levou para seu ofício, algo visto em trabalhos emblemáticos seus, como Parede da memória (1994), que ela considera como obra inaugural de sua carreira. Ali, aparecem fotografias de familiares da artista, impressas em patuás, amuletos de religiões de matriz africana.
Em 1997, a costura voltou em Bastidores (1997), em que retratava mulheres sobre tecidos, esticados sobre a estrutura de madeira que dá nome à série e é usada para tecer bordados. Nessas obras, as figuras femininas apareciam com riscos, rabiscos, suturas que representam o silenciamento delas na sociedade.
Ainda no ambiente familiar, Rosana e suas irmãs também foram estimuladas pela mãe a criarem seus próprios brinquedos com barro, a desenharem personagens, recursos que também permaneceram na atuação como artista que o futuro lhe reservara.
“Desde muito cedo esta coisa da manualidade, e até mesmo o senso estético, foram sendo desenvolvidos no dia a dia. No entanto, sempre tive também um fascínio pela biologia, principalmente por morar numa casa de periferia, com um quintal grande de frente, outro quintal grande ao fundo. Apareciam bichos selvagens, sapos, rãs, abelhas etc.”, lembra.
De início, contudo, Rosana se sentia, ela ressalta, dividida entre a biologia e as artes plásticas. Já na universidade, não pensava em ser artista. “Entrei porque gosto muito de museus e pesquisa. Eu tinha uma inclinação científica”, conta Rosana, que foi assistente de restauro e conservação no MAC USP, no início dos anos 1990. “Essa inclinação continua até hoje, tanto que me considero uma artista muito técnica, que pesquisa áreas que não estavam presentes na construção da visualidade, da representação negra e da produção brasileira. Eu então comecei a trilhar um caminho diferente, pensando a questão da negritude.”
Educadora, doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Rosana é especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres e bacharel em gravura, também pela ECA-USP. Foi também bolsista do Programa Bolsa da Fundação Ford, de 2006 a 2008, e CAPES, de 2008 a 2011. Em 2014, ela recebeu a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Atualmente além da participação em Veneza, está presente em exposições em Austin e Chicago, nos EUA, e em Wolfsburg, na Alemanha.
O interesse pela biologia – por meio de livros sobre “as formas de cognição, como se elabora o pensamento, essa área ligada ao pensar e ao cérebro” – não apenas prosseguiu ao longo dos anos, como também informa a sua produção artística. Não à toa, afirma Rosana, ela pesquisa e desenvolve em seu trabalho a questão da pseudociência e do racismo científico.
“Naturalmente fui me interessando pela ideia da visualidade e da visibilidade negra, da representação, em especial pela fotografia. E aí entra também a documentação dos artistas viajantes, por exemplo. Minha série ¿História Natural?, por exemplo, o nome já diz tudo. Nada menos natural do que a classificação do outro, dos seres, da fauna e flora. A gente tem que olhar para essa construção que foi feita e que inclusive ainda é usada para justificar uma falsa inferioridade da população negra. E não temos como pensar o país sem levar isso conta, varrendo para debaixo do tapete.”
Há também um elemento da História da Arte no Brasil que lhe causa incômodo: a ideia de uma vocação para a geometria, que ela considera imposta ao país por um ambiente internacional, sem levar em conta as dimensões continentais que temos, com tantas variantes.
“Eu não tenho nada com isso”, reclama Rosana, autora de uma série ironicamente batizada de Geometria à brasileira. “Esta dita vocação geométrica é algo limitado a um grupo muito pequeno de artistas, em sua maioria do Rio e de São Paulo. E os artistas negros brasileiros estão começando a rever isso, desafiando, questionando essa concepção de história da arte do país”, diz.
Outro elemento caro à produção de Rosana Paulino é a territorialidade. Ela considera, por exemplo, que praticamente nenhum outro artista negro influenciou a sua carreira, não apenas pela falta de circulação de conhecimento a respeito deles. “Eu sabia algo sobre Rubem Valentim, Emanoel Araújo, mas desde cedo eu sabia que não dava para seguir essas trilhas porque eu não era baiana”, pondera.
A artista afirma que “troca muito com seu ambiente.” Quando ela estava na universidade, por exemplo, as questões que lhe interessavam era o que significava ser mulher, negra, na periferia de uma cidade como São Paulo, ouvindo Racionais MC’s.
“Então as minhas trocas estão muito mais ligadas a observar este ambiente do que olhar para outros artistas. Logo de cara eu olhei que aquele não era o meu universo. Lembro que uma vez até tentei fazer um desenho relacionado a orixás, mas foi uma coisa absolutamente pavorosa. Eu não fui criada dentro desse mundo. E então comecei a procurar o meu caminho”, conclui.
Diante da crescente onda reacionária da extrema-direita, no Brasil e mundo afora, que ataca negros e povos originários, entre outros grupos minoritários, Rosana acredita que a resistência por parte de artistas, em especial, ainda está muito no começo. Ela salienta que as artes visuais, num país como o Brasil, ainda são um nicho muito restrito. Mas que a internet tenha sido de grande valia.
“Há muitos canais que estão ampliando a questão da visualidade, as reivindicações do povo negro. O que eu recebo de contato de alunos e professores é impressionante. E é uma tendência crescente. As pessoas querem se ver representadas, como constituintes da história, querem saber quem veio antes delas. A onda reacionária é esperada, especialmente aqui, onde a repressão é brutal. Mas é extremamente saudável esta produção de artistas negros que resgata a ancestralidade”, conclui.