A parábola do progresso, exposição em cartaz no Sesc Pompeia, encerra em tom elevado o ciclo de eventos realizados ao longo do ano no Brasil em torno dos 200 anos da independência (1822) e do centenário da Semana de Arte Moderna (1922). Invertendo a ênfase histórica, a mostra não pretende rever ou reinterpretar os fatos ocorridos nessas datas icônicas, mas sim pensar a produção contemporânea a partir de questões centrais surgidas ao longo desse processo de modernização, iluminando contradições e procurando identificar zonas de condensação temática e poética. Se ainda persiste uma narrativa dominante, marcada por uma série de motes e mitos que até hoje se mantém como uma base de articulação da construção da cultura no país, sua trama cada vez mais esgarçada deixa entrever uma presença intensa de elementos ignorados, ou sufocados, por esse mito hegemônico do progresso.
Ao invés da adotar uma visão linear e evolutiva da criação artística, a mostra se organiza pela articulação de núcleos complementares, que apresentam sobreposições e conexões nem sempre evidentes, agregando um conjunto amplo de atores e organizações. Cinco espaços, com diferentes perfis e enraizamentos geográficos, que interagem diretamente com as comunidades à volta, foram convidados a participar do projeto, com núcleos expositivos bastante personalizados, mas profundamente integrados ao conjunto. São eles o Acervo da Laje (Salvador), a Aldeia Kalipety e a Casa do Povo (São Paulo), o Quilombo Santa Rosa dos Pretos (Itapecuru Mirim, no Maranhão) e o Savvy Contemporary – the Laboratory of Form-Ideas (Berlim). Um sexto polo irradiador é o próprio Sesc Pompeia, que celebra agora seu 40º aniversário. Tanto o espaço – símbolo de transformação e geração de cultura desde os anos 1980 –, como sua autora, Lina Bo Bardi, exercem na exposição um papel fundamental.
A arquiteta constitui uma das linhas de força da mostra, que concilia no mesmo espaço mais de 600 itens, produzidos por uma centena de artistas, e dispostos de forma bastante fluída, graças ao projeto expográfico concebido por Tiago Guimarães. Ela está representada em primeiro lugar pelo próprio espaço que abriga a exposição e que completa agora 40 anos de existência (formando, junto com a independência e a semana modernista, o trio de efemérides que sustenta o evento). Mas Lina também está presente por meio de uma série de projetos, trabalhos, desenhos e reflexões que ajudam a iluminar múltiplas questões, como a conexão entre África e Brasil, com seus projetos de Casas de cultura no Benim e na Bahia; o resgate pioneiro das tradições artesanais e culturais na antológica mostra A mão do povo brasileiro (ressignificada por meio do trabalho de artistas como Mestre Dicinho); a luta contra uma visão retrógrada e elitizada da arte ou ainda a presença significativa do tema da imigração na exposição.
A curadora Lisette Lagnado, responsável pelo projeto da 27ª Bienal sob o tema Como viver junto, retoma essa estrutura dialógica para tentar coletivamente responder ao desafio de “recuperar noções de espaço público, destruídas em nome da modernidade”. Apesar de pontuar que “não se trata aqui de buscar modernidades alternativas, ou subalternizadas, ou de regiões periféricas”, Lisette reitera que vivemos momentos de questionamento de noções amplamente disseminadas como a do “homem cordial” brasileiro. “A trajetória pós-colonial do Brasil evidencia a permanência das estruturas oligárquicas sobre um tecido multiétnico disfarçado de ‘democracia racial’”, enfatiza.
Há, no amplo conjunto de trabalhos, uma série de obras de grande potência e intensa sintonia com as questões centrais identificadas pela curadoria, em suas várias instâncias de ação, como assuntos fundamentais da contemporaneidade, tais como colonialismo, racismo, natureza, imigração e resistência. Uma das primeiras obras da exposição, uma fotografia da série Sobre a Terra, de Daniele Rodrigues, parece sintetizar a força do levante popular, com uma mão que se ergue do solo portando uma espada-de-São-Jorge (ou espada-de-Ogum), tendo ao fundo uma paisagem branca na qual apenas se antevê uma igrejinha. A espada, no caso, é a planta, que possui uma série de conotações simbólicas para as religiões de matriz africana. Essa imagem, que pertence à potente seleção de trabalhos enviados pelo acervo da Laje, ecoa com o núcleo maranhense, situado lá na outra ponta do espaço de convivência. Pelas lentes de Márcio Vasconcelos vemos um conjunto de cinco retratos de mulheres fortes, na lida, cujo drama só se torna evidente quando se lê a legenda da imagem, que traz seus nomes (Dona Bia, Rosa, Dijé, Glorinha e Antonia) e a informação de que que fazem parte de um trágico grupo, o das Juradas de morte.
Esses encontros, que permeiam quase toda a exposição, adquirem uma potência ainda mais radiante no núcleo que funciona como uma espinha dorsal de todo o esquema, uma espécie de “tradução do conceito no espaço físico”, como explica Lisette. Trata-se de uma trama de obras de tempos históricos, instaladas na longa parede ao fundo do espaço expositivo. Esse entrecruzamento de temas e períodos recebeu o nome de Parábola, em referência ao título geral e que remete tanto à representação geométrica da curva como à força simbólica da narrativa e do símbolo imagético. Ali, uma ampla seleção interage com dez obras icônicas do modernismo, de ídolos como Tarsila do Amaral e Lasar Segall. Estes trabalhos considerados fundamentais para a história da arte brasileira são mostrados virtualmente, por meio de reproduções em caixas de luz, sublinhando seu caráter espectral. Como conta André Pitol, curador-adjunto da exposição, juntamente com Yudi Rafael, o processo de escolha desses trabalhos icônicos ocorreu em função da seleção das obras mais contemporâneas, algumas delas comissionadas especialmente para o evento, como se o presente interpelasse o passado em função das questões pertinentes na atualidade. “Procuramos dar uma resposta ao modernismo de maneira ampliada”, explica ele.
Em tempos de ameaça à precária democracia brasileira e de retrocesso político evidente, destacam-se em toda a exposição aqueles trabalhos que tocam mais cirurgicamente na ferida do autoritarismo, como o núcleo de correspondências de Ariel Ferrari, filho de León Ferrari, às vésperas de seu assassinato pela repressão argentina. Mas as violências surdas, ligadas a temas incontornáveis como colonização e diáspora são praticamente onipresentes. Manifestam-se em telas impactantes, como Invasão do Alemão, de Márcia Falcão, no gesto crespo e figuração potente de Elson Junior, ou em obras de caráter mais alegórico, como Odoyá, de Ani Ganzala, que figura Iemanjá e suas devotas. A orixá nada em meio a belo mar repleto de peixes, que se soltam de seus cabelos, sobre um fundo do mar repleto de caveiras e que parece não apenas mostrar que não somos o país do futuro, como prometia a mística modernista, como temos ainda muitos acertos de contas com o passado a fazer.
Homenagem
Além da mostra, que fica em cartaz até abril de 2023, o projeto Parábola do Progresso contará ainda com a publicação de um livro com ensaios escritos pela curadoria e um rol de convidados. A edição previa a publicação de uma série de registros fotográficos da exposição, realizadas por Rochelle Costi, que morreu precocemente, vítima de um atropelamento no final de novembro, que deve ser mantida e transformada em um tributo à artista.