Há cerca de um ano, ao receber o convite de seu colega professor Telmo Porto para montar uma exposição em sua galeria, a Arte132, em São Paulo, com um recorte de sua coleção, Miguel Chaia partiu de duas condições: como esculturas do próprio acervo da galeria ocupam lugares de destaque no lugar, Chaia decidiu que a tridimensionalidade seria um dos vetores para a seleção, para que houvesse um diálogo, como um site specific; e, visto que o calendário de mostras dos últimos dois anos vinha sendo dominado por questões de raça, gênero, sexualidade e classe, ensejadas pelas efemérides da Semana de 22 e o Bicentenário da Independência, o colecionador preferiu se debruçar sobre a linguagem artística. Era então concebido o escopo de Tridimensional: Entre o sagrado e o estético, a primeira exposição exclusiva de sua coleção, segundo ele, que fica em cartaz até 11 de março, com co-curadoria de Laura Rago e Gustavo Herz.
O que Chaia não esperava, no entanto, era que os recentes acontecimentos em Brasília – dos ataques incendiários na cidade durante a diplomação do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin, e o posterior atentado terrorista aos palácios na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro – iriam encontrar ecos nos trabalhos da nova mostra. A política se manifestava ali, meses após fechada a seleção de 45 peças, de um universo de quase 250 criações tridimensionais.
Segundo Chaia, que é também membro de conselhos do Itaú Cultural, do Instituto de Arte Contemporânea (IAC) e da Bienal de São Paulo, a polissemia que ele explorava no recorte inicial – um contraponto entre o sagrado e o estético na arte contemporânea – passou a revelar também um sentido político, ainda que a posteriori e de modo não intencional. Coordenador e pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC-SP, ele acabara não escapando do tema, abordado em suas aulas na Faculdade de Ciências Sociais da universidade paulistana, e caro, tanto às suas investigações acadêmicas como à própria coleção, desenvolvida há 45 anos ao lado de sua mulher, Vera.
“Há uma politização intensa da arte. A gente até perde um pouco o tesão para usufruir e curtir. Mas existe um imbricamento muito grande entre ambos. Como sou muito fascinado pelo assunto, resolvi fugir um pouco disso. Queria procurar um espaço de reflexão estética e sobre linguagem, mas não teve como evitar. A exposição reflete sobre o sagrado e deságua na política”, afirma Chaia à arte!brasileiros.
Para exemplificar, o colecionador lembra uma discussão que teria sido suscitada pelo artista norte-americano Donald Judd (1928-1994), segundo a qual a arte contemporânea “está entre a pintura e a escultura e que, nesse sentido, não sendo uma coisa nem outra, o objeto cria uma dimensão muito intensa de simbolismo”, diz Chaia. “E nós temos na exposição um trabalho do Nino Cais, que são duas marretas pesadíssimas na parede e, entre elas, há dois cálices, num equilíbrio muito precário. É uma obra que remete à força do poder, da violência, da opressão”.
Chaia cita outros exemplos, como o taco de beisebol de Rompedor de limites, de Marcelo Cidade; a obra Encalço, de André Komatsu, em que estilhaços de vidro aparecem emoldurados por uma estrutura de madeira e madeirite; e uma obra sem título, de Deyson Gilbert, em que quatro telas brancas estão pressionadas por sargentos, instrumentos da marcenaria usados para comprimir madeira.
“Se você olha a exposição após o 8 de janeiro, você vê os vidros quebrados em Brasília. Vê as marretas quebrando vidraças. O taco vandalizando as casas institucionais da Democracia”, argumenta Chaia. “No caso da obra de Deyson, é a própria pressão sobre a arte, o vandalismo contra a arte em Brasília. É a destruição do Di Cavalcanti, de todas obras que foram afetadas durante os ataques”.
A discussão inicialmente proposta, no entanto, permanece lá, predominante e avistada nas obras, de modo sutil e sensível pelo trio de curadores. Em texto crítico de Chaia, presente no catálogo, o trio de curadores estabelece os três pilares conceituais que guiaram seu recorte: “Será possível perceber na arte contemporânea vestígios do sagrado? O que pode haver de comum entre a arte e o sagrado? E, ainda, a arte contemporânea, ao ganhar autonomia, fortalecendo seu significado estritamente estético, abandona o mítico, a religião e a religiosidade na busca da revolução da linguagem?”, indagam.
Chaia conta que ele, ao lado de Laura e Gustavo, procuraram as respostas possíveis nos objetos, e algumas obras foram chave. “Inicialmente, chegamos a uma meia dúzia que consideramos referenciais. Uma delas é Copo de água benta ao lado de copo de água comum, de Deyson Gilbert. Quando você vê esse trabalho, nada permite saber o que é bento, sagrado, e o que não é. Somente quem montou sabe”, explica. “Outro trabalho importante foi um objeto manipulável da Karin Lambrecht, Uma porta para o perdão, feito com tecidos, em que você coloca um bilhetinho, com papéis que estão dispostos ao lado, pedindo perdão a quem você magoou”. A obra, ressalta ele, alude à relação com o outro, “que é o religar da religião”, em sua etimologia.
O colecionador destaca ainda que o trio conseguiu descobrir o sagrado nos trabalhos de Laura Vinci e de Felipe Cohen, por causa do mármore que usam, “um material que, na arte, veio da Grécia Antiga, passa pelo Renascimento, pelo estatuário. Como diz o Cohen, o mármore forjou deusas e deuses”, conta.
Já o trabalho Lola, de Lucia Koch, traz materiais transparentes, que lembram vitrais de uma catedral, sugere Chaia. “Temos ainda um trabalho da Valeska Soares, uma cápsula de vidro que parece um grande bebedouro de passarinho, e ele é preenchido por vinho e veneno. A água, o sangue, o vinho são uma triangulação de elementos que estão presentes em todos os rituais, do candomblé ao catolicismo. O fogo, por sua vez, é outra questão importante, com sua ideia do inferno, e que está no trabalho Cabeças cortadas, de Nicolás Robbio.
Há também duas obras de Tunga que o colecionador considera relevantes no escopo de sua curadoria: o Tacape, feito nos anos 1980, com imãs, que suscitam a discussão da energia que emana daquele material. E ainda os Vasos comunicantes, “uma ideia de vasilhame, que remete a taças de vinho gregas, ou que pode ser o Santo Graal, envolvidos por um tecido marrom, que é meio um Santo Sudário”, sugere.
Chaia também encontrou repercussões de seu recorte curatorial em dois trabalhos de José Resende: uma sem título, que é uma cruz de ferro invertida, e um tronco de madeira atravessado por ferros, numa alusão às flechas que atingem o corpo do santo em suas representações, sejam pinturas ou esculturas. “O interessante é o que o próprio Resende, com quem falei, afirma não ter pensado nessas questões ao conceber as obras. Os títulos vieram depois, independentes da vontade do artista”, conta Chaia. “Mas os objetos carregam essa potência narrativa”.
SERVIÇO
Tridimensionalidade – Entre o sagrado e o estético
Curadoria de Miguel Chaia, Laura Rago e Gustavo Herz
Até 11 de março
Arte132 Galeria – Av. Juriti, 132, Moema, São Paulo – SP
Visitação: segunda a sexta-feira, das 14h às 19h; sábados, das 11h às 17h
Entrada gratuita