A literatura erótica feminina ganhou destaque nas últimas décadas com a reedição das obras de Hilda Hilst pela editora Globo. O movimento de mulheres divulgando poesia e prosa carregadas de luxúria abriu margem a uma série de discussões sobre a liberdade sexual da mulher e o machismo na literatura. Embora muitas autoras sejam aclamadas por esse tipo de criação literária – como a própria Hilda, Olga Savary e Adélia Prado – é incomum encontrar quem conheça a precursora desse movimento que deu à mulher autonomia para derramar seus desejos nas linhas de um poema ou um romance.
Faz um século, em 2016, que Gilka da Costa de Mello Machado – ou somente Gilka Machado – lançou seu primeiro livro, com impressão terminada em 31 de dezembro 1915. O espanto causado pelo conteúdo que Cristais Partidos trazia nas 111 páginas era esperado. Seus versos já tinham ocupado páginas de jornais e revistas da época, sendo ela colaboradora de alguns veículos, como a revista Fon-Fon e a Revista da semana. O motivo do assombro era o erotismo que ela empregou a alguns de seus poemas, deixando a sociedade da época incomodada com tamanha ousadia. Uma mulher escrevendo versos de conteúdo sexual era inadmissível para o contexto sociopolítico da República de Hermes da Fonseca. Apenas a hipótese de Gilka imaginar o desejo carnal já era condenável pelo crivo do machismo. Foi a crítica de Afrânio Peixoto, em 1916, que inaugurou a “caça à Gilka”, chamando-a de “matrona imoral”. Além de precursora na literatura erótica feminina e de denúncia da opressão às mulheres no Brasil, Gilka foi sufragista ativa, sendo uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino, fundado em 1910 apenas para Mulheres. Gostava de escrever “Mulher” assim, com M em caixa alta, para afirmar a força do sexo feminino. No partido, exerceu o cargo de primeira secretária. Em seus poemas, procurou abordar também a situação das classes sociais menos abastadas, deixando explícito o descaso do governo em relação a isso.
Nascida em 12 de março de 1893, na cidade do Rio de Janeiro, foi depreciada pela sua literatura, mas também muito aclamada por quem buscava compreendê-la. Neta de Francisco Moniz Barreto, baiano considerado o pai do humor obsceno no Brasil, Gilka desafiou a crítica literária machista e racista da época. Em carta enviada a ela em 1915, Lima Barreto destoa dos colegas de profissão e declara: “Admirei muito de sua inspiração, a sua completa independência de moldes, dos velhos ‘cânons’, e a sua audácia verdadeiramente feminina”. Já para Mário de Andrade, a “bacante dos trópicos, como era chamada por Agripino Griecco, era apenas uma menina. A todo o tempo, dirigia-se a ela com chamamentos infantis, embora fossem nascidos no mesmo ano. Isso mostra que a forma de Mário tratar Gilka era para depreciá-la. A história cuida de lembrar que o pioneiro do modernismo não fazia isso apenas por machismo, mas por não aceitar a orientação formal de sua literatura. Os versos simbolistas gilkianos tinham um flerte com o parnasianismo. Anos depois, parece se arrepender ao publicar, no Estado de S. Paulo, que ela era uma ”poetisa ilustre, autora dos mais ardentes versos femininos na nossa língua”.
A pele pálida, carregada por camadas de pó de arroz, escondia sua origem negra, também motivo para a ofensiva de críticos contra ela. O crítico Humberto de Campos – um dos defensores de Gilka junto a Osório Duque Estrada e outros – relatou, em Diário Secreto uma conversa com o também crítico Afrânio Peixoto, na qual este contava sobre o encontro que teve com Gilka ao ir lhe entregar uma carta. Peixoto disse, com desdém, que não imaginava que a poeta era uma “mulatinha escura” e fez questão de enfatizar que o ambiente de sua morada “respirava pobreza”.
A família também foi considerada culpada pela devassidão daquela moça que, aos 22 anos, se empenhou em se livrar das garras da sociedade. O registro da mãe como prostituta para poder trabalhar com atriz de rádio era motivo de chacota para depreciar suas origens, além de atribuírem culpa ao pai, um beberrão que batizou-a em homenagem a uma vodca alemã chamada Gilka. Assim, a poeta foi colocada à prova do método de Hippolyte Taine, baseado na ideia de determinismo, no qual a pessoa está fadada a se comportar de acordo com sua raça, seu momento histórico e o meio em que vive. Portanto, a culpa da imoralidade de Gilka vinha do fato de ser negra, da família “perturbada” e do momento histórico no qual o feminismo efervescia com as sufragistas.
Gilka não deixou barato as acusações preconceituosas. E também recusou a ajuda de grandes nomes. Recusou, por exemplo, o pedido de Olavo Bilac para escrever o prefácio de Cristais Partidos. Quando Bilac perguntou do por que, Gilka apenas respondeu que queria aparecer para o público sem defesa. “Havia no meu ser um a torrente que era impossível represar: os versos fluíam, as estrofes cascateavam… E continuei, ritmando minha verdade, então com mais veemência”, escreveu na abertura de Poesias Completas, de 1978. Condenou seus críticos diretamente e indiretamente, nas entrelinhas de sua escrita. Era ela, segundo seus censores, a responsável pela depravação moral das moças da sociedade carioca.
No poema Comigo Mesma, é possível reconhecer essa característica gilkiana, como no verso “Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?/Dança, porém, não como a Salomé da lenda,/a lírica assassina”, onde a injúria hostil eram as opiniões dos críticos sobre ela e a dança era o seu hábito de escrita. Nos versos de Conjecturando, dedicado a Duque Estrada, desabafa sobre desistir de lutar. “Convenci-me/agora, de que o gozo é um crime” é como ela inicia uma das estrofes do poema, onde fala sobre depor armas e se entregar à morte. Ali estava uma referência clara ao cansaço que a abateu com o passar do tempo, fazendo com que desistisse de continuar rebatendo a crítica e acabasse reclusa.
Foi a única mulher a colaborar, eventualmente, na revista erótica A Maçã. Extremamente machista, a criação de Humberto de Campos escandalizou por trazer conteúdo picante, que colocava a mulher de forma submissa e degradante. E, ao lado de Cecília Meireles, formou a dupla de únicas mulheres a escreverem para Festa, revista lançada em 1927 por Tasso da Silveira e Andrade Muricy.