No filme “The Square – a arte da discórdia” (Ruben Östlund, 2017) acompanhamos o diretor de um museu sueco (Claes Bang) tentando conciliar suas boas intenções com as consequências inesperadas de seus atos. Por exemplo, ele tenta apartar a briga de um casal na rua, para logo depois descobrir que tratava-se de um golpe, e que ao final levaram-lhe a carteira, o celular e as abotoaduras que tinham sido de seu avô. É possível que se não houvesse este toque de pessoalidade envolvendo o legado familiar e suas boas intenções, ou seja, se ele tivesse sido e anonimamente furtado na rua, talvez ele aceitasse o fato. Mas o envolvimento sai caro, sempre. Por isso ele decide acolher a “brilhante” ideia de um subordinado escrevendo uma carta denúncia, colocada na caixa do correio de todos os moradores do prédio onde se podia ver que estava o celular furtado, mas sem que se soubesse sua localização exata. O plano parecia perfeito: o criminoso intimidado por ser reconhecido, sem saber que todos haviam recebido a tal correspondência, devolveria o produto do furto, evitando-se assim a extensa e complexa participação da polícia. Porém, na hora da execução tudo começa a dar errado, a começar pela inconsequência do autor da brilhante ideia, que se recusa a entrar no prédio como havia prometido. Daí em diante inicia-se uma trágica repetição deste mesmo erro e suas consequências devastadoras.
The Square é uma ironia atualizada de nossa moral cubicular, baseada na oposição não dialética entre dois princípios contraditórios de nossa experiência narcísica:
- Guarde uma atitude de benévola indiferença com relação aos outros. Como diz o funk: cada um na sua e todo mundo numa boa. Não saia do seu quadrado, seja ele a tela do celular, a tela do computador, a tela do cinema, a tela branca de Robert Rauschenberg ou o cubo azul de Ives Klein. O seu espaço é seu, seja ele definido pelas fronteiras do seu corpo ou pelo uso de sua imagem. Nunca deixe que ninguém se aproprie do que é seu e guarde os muros de sua intimidade como seu capital mais importante. Sobretudo, acostume-se e obrigue-se a ser feliz neste quadrado. Não deixe ninguém saber que você se interessa, precisa ou depende do reconhecimento dos outros fora dele.
- Quando alguém entrar em seu quadrado ou quando você sair deliberadamente dele, toda razão lhe será concedida imediatamente. Em nome da justiça ou da vingança, calcado na piedade ou na liberdade de expressar-se, sempre você terá ao menos alguma razão ao fazer o que faz. As consequências de uma ação inespecífica sobre um alvo indeterminado devem ser pensadas como um bombardeio generalizado sobre uma cidade inimiga. Danos colaterais, vítimas de fogo amigo, todos devem compreender que, no fundo, não deveriam ter posicionado seu quadrado naquele lugar.
A resposta desproporcional lentamente cobra seus efeitos. Esse é também a sensação que temos cotidianamente quando nos parece que as pessoas perderam o tamanho exato de si mesmas e do mundo. Tudo parece fora de volume. Ou somos excessivamente reativos, sensíveis e ofendidos ou invertemos o sinal e nos mostramos exageradamente apáticos, inconsequentes ou egoístas. Em síntese, quando sentimos que fomos atingidos de modo particular, como efeito de nossas contingências específicas e de nossas fraquezas singulares tendemos a reagir movidos pela necessidade, atacando de forma inespecífica de modo a ostentar nossa potência de intimidação. É assim também que uma ação genericamente boa pode trazer consequências terríveis em termos específicos. O que esquecemos aqui é que nossos atos estão mediados por equívocos e mal-entendidos. Esquecimento típico de quem vive e conversa apenas dentro de seu quadrado.
“Menon” é um diálogo de Platão no qual se propõe a um escravo, sem educação prévia, que este desenhe um quadrado com o dobro da área de um quadrado original. Inicialmente o escravo avança valente propondo a duplicação de cada lado do quadrado, o que Sócrates mostra ser um erro, pois disso resulta um quadrado com quatro vezes a área original e não duas, como lhe fora pedido. Assim o escravo passa da certeza total e equivocada, para o desamparo igualmente genérico no qual ele se declara incapaz de enfrentar o problema. A astúcia do filósofo está em mostrar que ele estava no caminho certo, mas concluiu de modo precipitado. Bastaria notar que o quadrado que ele desenhou era duas vezes o tamanho do quadrado pedido, portanto, bastaria dividir pela metade este quadrado que se chegaria a resposta correta.
Há uma lição clássica aqui sobre a importância da reminiscência na realização do conhecimento. No fundo o escravo sabia a resposta, mas ele não sabia que sabia. Mostrando primeiro que ele esta possuído por uma falsa certeza (ironia) e depois que ele poderia pensar na solução correta por si mesmo (maiêutica) Platão faz o seu ponto.
Contudo, o exemplo permanece atual se o tomamos para enfrentar nossa própria moralidade cubicular. A resposta imediata quando se trata de sair de seu quadrado está baseada em certo excesso. Este excesso moral deriva de duas coisas sobrepostas: estou com raiva porque fui contrariado: furtaram minha carteira, aproveitaram-se de minha boa fé. Mas minha raiva se quadruplica porque escuto uma voz punitiva ao fundo dizendo: “Está vendo o que acontece quando você se preocupa com os outros? Volte já para o seu quadrado e aprenda a ficar lá!”. Até aí estamos como o escravo de Mênon. Desamparados e inquietos porque nossos bons motivos só nos trazem consequências indesejáveis, dando causa a processos que se voltam contra nós. O destino é injusto e o Outro é malévolo, aceite isso, dirão os preguiçosos.
Mas aqui intervém um detalhe que interessa aos psicanalistas. A duplicação é suportável se contamos com a divisão. A duplicação é o princípio do que Lacan chama de imaginário. Achar que o outro é você, age como você e que todos eles são iguais entre si, como os moradores de um mesmo prédio contra os quais você pode ficar latindo e ameaçando por que alguém mexeu no seu queijo, ou melhor, no seu quadrado. A divisão é um correlato simbólico de nossa experiência com o outro. Não se trata apenas da divisão como partilha e circulação da razão e do poder, mas da divisão do próprio sujeito. Como diria Hanna Arendt: prometer e perdoar andam juntos, para o outro e para nós mesmos. Ir e voltar atrás, passar dos limites e constituir limites sobre fronteiras ultrapassadas. Todas estas práticas escassas em nossos tempos de turbulência narcísica. O que fez a ira do protagonista se inflar desproporcionalmente, tema que reaparecerá em vários outros momentos do filme, é o fato de que ele não se perdoa. Ele não admite a divisão e incoerência de seus próprios “bons sentimentos”.
Intervém aqui o terceiro ponto sugestivo na relação entre o quadrado grego e o quadrado contemporâneo. Notemos que a solução matemática passa pelo uso da diagonal do quadrado. Primeiro você quadruplica e depois divide. Para dividir temos que contar com a diagonal do quadrado, o que para os gregos era um problema, pois isso remetia a um número irracional. Um número com o qual podemos operar, mas não calcular integralmente, tipo raiz quadrada de dois. Um número que mais tarde poderá integrar a reta dos números reais. Ora, chegamos assim ao terceiro ingrediente da equação moral de nossa época: não basta deflacionar o imaginário e depois dividir simbolicamente seus efeitos é preciso operar com o Real. O real é o impossível que torna incomensurável nossos quadrados, independente de boa ou má fé. Não precisamos imaginar uma cidade de quadrados perfeitos, com tudo e todos em seus lugares, aliás é possível que esta imaginação esteja nos fazendo mal. Cada um de nós, e pior, cada um dos outros, possui a sua própria diagonal, com seu lado desproporcional com todos os outros e consigo mesmo.
É bom descobrir logo do que é feita sua diagonal, senão ela te pega.