Por Bitu Cassundé
O Nordeste brasileiro foi um grande fornecedor de mão de obra para aventuras econômicas no Norte do Brasil: entre milhares de nordestinos fugidos da seca em direção ao Éden amazônico, a cearense Minervina Félis de Lima migrou para o Acre por volta de 1919 para trabalhar na extração da borracha. Minervina casou-se com um indígena peruano e com ele teve Francisco Domingos da Silva, nascido entre 1922 e 1923.
Ali, por meio das missões religiosas que acolhiam os fluxos migratórios, a “civilização branca” exercia sua violência em um modelo colonial de catequização, exploração e manipulação da fé. Nos primeiros dez anos de vida, o menino Chico da Silva viveu entre esse contexto opressor e a floresta, com suas lendas e liberdade.
Com pouca perspectiva de sobrevivência, Minervina regressa para sua cidade natal, Quixadá, no sertão do Ceará. Nessa paisagem árida, de subsistência castigada pela seca, o pai de Chico é mordido por uma cascavel, cujo veneno lhe é mortal. Após a perda, mãe e filho se assentam, por volta de 1940, em Pirambu, bairro periférico de Fortaleza.
É nos muros da Praia Formosa, em Fortaleza, que Chico da Silva compõe imagens de seres impossíveis e narrativas orais amazônicas. Ele é, então, capturado novamente pelo projeto colonizador quando Jean Pierre Chabloz, enfeitiçado pela poética do artista local, o introduz à tinta guache e ao papel, fazendo-o abandonar o suporte da parede.
Entre 1930 e 1940, o suíço promove a presença de Chico em salões nacionais, como na Galeria Askanasi, no Rio de Janeiro. Já nos anos 1960, Chabloz articula, no recém-inaugurado MAUC/UFC (Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará), um lugar onde o artista criaria um ateliê, receberia um salário e permaneceria durante três anos. A mística construída por Chabloz em torno desse personagem indígena atingira seu ápice em 1966, quando Chico participou da Bienal de Veneza.
Um elemento constante na obra de Chico da Silva é a boca. A boca aberta para o bote, a boca aberta para o alimento, a boca que acolhe e abriga, a boca que come e transforma, a boca que devora, a boca da noite, a boca do estômago. Nas pinturas, são inúmeros os embates, bem como as animalidades que utilizam a boca como arma, como defesa, como prelúdio de perigo.
Chico ativa uma cosmologia particular na qual elementos da vida, do cotidiano, do imaginário amazônico e indígena são protagonistas. Se hoje sua criação de mundos seria classificada como “fabulação especulativa”, o artista em vida nunca foi associado a uma ideia de “futuro”, mas sempre fixado a uma imagem de passado, primitivo e bestializado, e com uma difícil adequação ao presente, ao agora, à ideia torpe de modernidade que se anunciava.
A própria boca de Chico também foi a boca da reinvenção da linguagem, da concepção de novas palavras, das criações dialéticas, que desnorteavam o interlocutor: sua boca com dentes de ouro conferia a seu corpo a mais completa modernidade. A boca de Chico nunca foi a do passado nem a do presente, a sua boca sempre esteve no futuro, e anunciava: até o céu da boca é de ouro.
Outro movimento importante na saga de Chico é a criação da Escola do Pirambu. O lugar reunia artistas colaboradores com os quais Chico compartilhou sua técnica, cuja reprodução logo contaminou a ideia do “gênio” e do “original”, fundamentais ao mercado de arte. Essa diluição da autoria na Escola do Pirambu não passou isenta de punição. Em uma matéria no Jornal do Brasil, o próprio Chabloz acusa o esvaecimento da autenticidade poética do artista. A manchete anuncia: “Suíço decreta a morte artística de Chico da Silva”.
Chico nunca se recuperou artisticamente dessa campanha produzida pelo crítico europeu, que não o respeitava como humano capaz, tratando-o como um primitivo. Chabloz não descobriu Chico da Silva: foram os muros da Praia Formosa que germinaram o visionário artista, e foram seu tino, sua força e coragem de atravessar adversidades na vida e na arte, que o configuraram como um descobridor de si mesmo.
Após o ataque, Chico foi constantemente internado devido ao alcoolismo, a problemas psiquiátricos e aos sinistros de uma sociedade também colonizada que não conseguiu sequer respeitá-lo. Atualmente, sua obra passa por um novo processo comercialmente especulativo, mas Chico morreu pobre em 1985, tornando-se personagem que merece ser desmistificado e humanizado. ✱