Por Theo Monteiro
Objeto da exposição Duas poéticas, na Galeria Estação, em que sua produção foi colocada em diálogo com a da pintora contemporânea Cristina Canale, José Antônio da Silva, em que pesem rótulos como “primitivo”, “naïf” e “ingênuo”, produziu obra de grande complexidade e que pode oferecer importantes chaves de leitura para que se compreenda um grande momento de virada na história do Brasil, tanto em termos socioambientais, quanto em termos artísticos e formais.
Para compreender melhor a obra desse singular pintor, é importante entender sua origem na cultura caipira. Nascido em 1909, em Sales de Oliveira, noroeste paulista, pertencia a uma família de trabalhadores rurais. Sem posses, os mesmos viviam se mudando de fazenda em fazenda, oferecendo sua força de trabalho para os latifundiários da região. Essa era a realidade de muitas famílias caipiras desse período. Conforme mostrou Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito, amplo estudo que realizou sobre a cultura caipira, a mesma foi formada ao longo do período colonial por sertanistas errantes que se estabeleceram em regiões remotas do sertão paulista. Vivendo em pequenos povoados ou ranchos, baseavam-se na agricultura de subsistência e caça/coleta. Com a expansão do latifúndio ao longo dos séculos 19 e 20, os mesmos foram gradualmente perdendo seu modo de vida e sendo subjugados ao trabalho nessas grandes propriedades. Assim, sua cultura foi progressivamente desaparecendo. Não apenas isso. A paisagem, antes marcada pela presença de florestas, cerrados e agriculturas de pequena escala, foi cedendo espaço para a monocultura e os rebanhos de gado.
A obra de José Antônio da Silva mostra exatamente essa mudança social e paisagística do interior do estado. A começar que suas pinturas nunca retratam uma natureza selvagem ou intocada. Por mais que a figura humana esteja por vezes ausente, sempre existe algum indicativo de ação antrópica: estradas, plantações, animais de criação etc. Em suas paisagens de monoculturas (algodoais, milharais, pastagens) estão representados sinais de devastação, como árvores mortas, caídas ou tocos de madeira. A presença de boiadas passando, pessoas se locomovendo ou trabalhando indica que nada ali está parado: tudo se move e se transforma o tempo todo, inclusive a vegetação, que foi recentemente alterada e teve sua configuração original destruída. Urubus são igualmente frequentes nas pinturas do artista, como se representassem a morte, que espreita a tudo e a todos. O artista nos narra, portanto, a transformação do campo brasileiro e a desagregação de um tipo de cultura nele existente.
A contribuição de Silva, contudo, não se restringe a um retrato social. Na história da arte brasileira, sua aparição e carreira se dão justamente em meio a um momento de profunda transformação. “Descoberto” pela crítica em 1946, presencia um momento em que o sistema da arte brasileiro começa a se institucionalizar: surgem os primeiros museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, é criada a Bienal Internacional de São Paulo e se desenvolve um crescente mercado voltado para a arte moderna. Junto a essas transformações, desenvolvem-se no país as tendências de arte abstrata, que terminam por entrar em rota de colisão com a arte figurativa até então vigente, de viés expressionista e com temática voltada para o social.
Silva estabeleceu interessantes diálogos com esse debate estético vigente na arte brasileira desse período. Em um momento no qual o mundo vivia uma espécie de “ressaca” do pós-guerra, a temática socialmente engajada ganhou muito terreno no campo das artes e da cultura, influenciada por certo expressionismo, e que teve em artistas como Portinari e Goeldi importantes representantes. Grande defensor desse tipo de estética era o crítico Lourival Gomes Machado, que, não por acaso, tinha relação muito próxima com nosso Silva. Ainda que de maneira muito singular, o tom de denúncia social aparece com certa frequência na obra do pintor em questão. Cenas de trabalho, cotidiano e mesmo momentos de sofrimento e tragédia são recorrentes em suas pinturas, em geral com grande expressividade. A própria destruição da natureza pela monocultura é criticada nesses trabalhos, antecipando o debate ambiental em algumas décadas. Como forma de obter a expressividade e dramaticidade necessárias para suas composições, recorre a modelos da arte sacra, possivelmente oriundos de um determinado catolicismo popular. Algumas posições e estruturas compositivas são muito semelhantes, por exemplo, a pinturas de ex-votos. A própria arte sacra era tema também de nosso artista, e ele conta em depoimento que só teria começado a pintar depois de perceber que as imagens que via nas igrejas “eram feitas por mãos de pessoas”.
Num segundo momento, o tema não perde a importância, mas Silva vai reduzindo os elementos pictóricos a pontos, pinceladas ou manchas serializadas, de modo a criar composições extremamente dinâmicas. Tal procedimento guarda muita semelhança com momentos da abstração geométrica (embora o mesmo jamais tenha abandonado por completo a figuração) e chegou a receber elogios de um dos principais representantes do concretismo, Waldemar Cordeiro. Essas escolhas pictóricas levaram ao rompimento de Silva com Gomes Machado, mas coincidem com sua aproximação com o crítico Theon Spanudis, defensor de uma arte construtiva bastante particular.
Ainda que lido como um ingênuo fora de seu tempo, Silva compreendeu perfeitamente não apenas sua época e as tendências nela discutidas, como trouxe uma contribuição absolutamente original para a mesma. ✱
Muito interessante as pinturas!! a vida dura do homem do campo e seus dramas!! a falta de regulação das monoculturas e o desrespeito ao meio ambiente representada nas telas!!