Durante duas semanas, o coletivo Taring Padi, da Indonésia, hospedou-se na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para uma residência artística. O projeto, realizado em parceria com a Casa do Povo e com a instituição Framer Framed, da Holanda, partiu do desejo de promover trocas entre o grupo indonésio e os militantes do MST.
Douglas Estevam, coordenador pedagógico da ENFF e integrante da coordenação do Coletivo Nacional de Cultura do MST, fala da relação que foi estabelecida com o coletivo Taring Padi: “Há uma afinidade de história de terceiro mundo, de povos colonizados, de povos oprimidos, que tiveram que lutar contra povos de regimes ditatoriais. Ainda que sejam contextos históricos muito diferentes, temos uma história política que nos aproxima e que possibilita um espaço de conexão e de entendimento muito produtivo”.
A ENFF fica localizada em Guararema, na região metropolitana de São Paulo, e foi inaugurada em 2005 com o intuito de proporcionar a formação política de militantes de movimentos sociais.
A ARTE É COLETIVA
Taring Padi foi formado em 1998, um ano após os levantes que levaram ao fim a ditadura militar de Suharto. O ex-presidente Hadji Mohamed Suharto ficou no poder desde a derrubada de seu antecessor, Sukarno, em 1967, até 1998, quando renunciou. No site do coletivo, eles afirmam que um dos princípios do grupo é erradicar noções burguesas do mundo da arte como “obras de arte” e a ideia de um criador individual. Por isso, as obras do Taring Padi são realizadas coletivamente em quatro suportes principais: banners, pôsteres, fantoches e um livreto popular.
Quatro integrantes do Taring Padi vieram para a residência no Brasil: Aris Prabawa, Hestu Nugroho, Bayu Widodo e Dodi Irwandi. Em entrevista para a arte!brasileiros, o grupo explicou que o conceito de arte está conectado com a justiça social e com a política. Portanto, seus trabalhos sempre se relacionam com as pessoas e com as comunidades que visitam para a produção de suas obras coletivas.
“Nós tivemos muita sorte, porque pudemos absorver muitas informações das aulas que tivemos aqui. Aprendemos sobre uma parte da sociedade brasileira, sobre o cenário político e o sobre o contexto do movimento [MST], e também sobre a terra e sobre as pessoas, com quem pudemos aprender diretamente no Acampamento Mariele Franco”, explica Hestu Nugroho.
Todos concordam que as similaridades entre Brasil e Indonésia facilitaram o processo de criação e também de conexão entre os grupos. No contexto sociopolítico, Taring Padi mencionou a corrupção, a violência militar, a destruição ambiental e a pobreza como temas em comum, mas também citou que dividem o mesmo senso de humor dos brasileiros, apesar de o idioma ter sido uma barreira inicial, que foi atenuada pela presença de uma tradutora, mas também pela convivência.
REBUT TANAH KITAA / RETOMAR NOSSA TERRA
Militantes do MST de diferentes localidades – os participantes vieram de São Paulo, Minas Gerais e Paraná – conviveram diariamente com o grupo indonésio ao longo das duas semanas de residência. Todos ficaram no alojamento da ENFF e, além das atividades artísticas, contribuíram para a organização e manutenção da escola.
Felipe Gemelli faz parte do setor de comunicação do MST pela regional do Vale do Paraíba e foi um dos convidados do movimento para participar do projeto. Gemelli se surpreendeu com a história do grupo bem como com a política da Indonésia.
“Esse contato fez a gente entender mais o propósito do trabalho deles e a importância da retomada da terra. O MST também tem essa proposta de que a terra seja um bem comum. O trabalho de organização popular de denúncia, de crítica que eles fazem é muito pontual ao sistema. E o MST tem esse papel de denunciar os abusos do agronegócio, da especulação imobiliária. Então, a gente trabalhou nesse sentido, tanto que o painel principal se chama ‘Retomar nossa terra'”, comenta.
O painel mencionado é o resultado da residência artística. Realizado em conjunto, a obra traz referências dos pontos de ligação entre os grupos e homenageia personalidades como Mariele Franco, Cacique Raoni e Olga Benário. O painel também celebra a fauna e a flora dos dois países e tece críticas à exploração da terra e ao agronegócio. “Retomar nossa terra” [rebut tanah kitaa] é o nome da pintura cujo mote aparece ao longo do repertório do Taring Padi.
Além do painel, na sua passagem pelo Brasil, o coletivo também produziu fantoches, um dos suportes utilizados frequentemente pelo Taring Padi. Os fantoches fazem parte da cultura de Java, onde o grupo foi formado, como uma forma de contar histórias. Feitos com papelão, os fantoches são utilizados para apoiar manifestações populares na luta por justiça social.
O painel foi apresentado no dia 20 de abril na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e no dia 21 de abril no Armazém do Campo, em São Paulo. Depois, o grupo indonésio viajará com a obra para a Holanda e a Austrália.
O CONVITE E A POLÊMICA DA DOCUMENTA QUINZE
A Casa do Povo foi a responsável por fazer a ponte entre o Taring Padi e o MST. O diretor da instituição, Benjamin Seroussi, conheceu o trabalho do coletivo indonésio durante a documenta quinze, na Alemanha, na qual o grupo foi acusado de antissemitismo.
A documenta é uma exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos em Kassel e, em sua última edição, causou polêmica com o painel People’s Justice (2002), de Taring Padi, por conter imagens consideradas antissemitas. O painel foi coberto e rapidamente retirado da mostra.
Na época, Fabio Cypriano escreveu para a arte!brasileiros: “O fato gerou um pedido de desculpas formais no site da documenta, tanto por parte do ruangrupa [coletivo que assina a direção artística da documenta quinze], quanto do Taring Padi, além de ter sido organizado um debate sobre antissemitismo na arte, no final de junho. O Taring Padi, aliás, ocupa vários espaços da mostra, um dos mais belos em uma antiga piscina pública, o Hallenbad Ost, com uma diversidade de cartazes e pôsteres de demonstrações políticas, muitos feito como gravuras. A polêmica, no entanto, funcionou como combustível para guerras culturais que gostam de atacar arte contemporânea”.
O banner de 8 x 12 metros foi produzido em Yogyakarta, na Indonésia, em 2002, por diversos membros do coletivo. As ilustrações buscavam criticar a ditadura de Suharto, mas continham dois personagens judeus no qual um tinha um chapéu da SS, a polícia nazista, e o outro estava representado como um militar da Mossad, o serviço secreto do Estado de Israel.
No pedido de desculpas, disponível na íntegra no site da documenta, o grupo afirma: “A imagem que usamos nunca teve a intenção de ser o ódio dirigido a um determinado grupo étnico ou religioso, mas uma crítica ao militarismo e à violência do Estado. Descrevemos o envolvimento do governo do estado de Israel da maneira errada – e pedimos desculpas. O antissemitismo não tem lugar em nossos corações e mentes”.
Para o grupo, a parceria com a Casa do Povo, uma instituição de origem judaica, representa uma virada de página para o que aconteceu: “Esse projeto é a prova de que podemos nos conectar com qualquer pessoa, de qualquer maneira”, conclui Aris Prabawa.