Na década de 1990, Juan Bosco Hakihiiwe, ianomâmi da Amazônia venezuelana, desenvolveu, junto à artista mexicana Laura Anderson Barbata, técnicas de produção de papel com fibras vegetais – de cana-de-açúcar, banana, milho, amoreira etc. – que passou a usar como suporte para seus desenhos. Neles, buscava traduzir, por meio de elementos mínimos e repetidos, não somente a paisagem, como o imaginário de sua comunidade.
Cerca de 30 anos depois, o Masp apresenta a exposição Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós, individual que reúne mais de uma centena de desenhos, monotipos e pinturas do artista, que passou a assinar com o nome derivado de Sheroana, a comunidade onde nasceu no município de Alto Orinoco. O conjunto – vindo de sua galeria, a ABRA, em Caracas, e de colecionadores brasileiros – cobre cerca de duas décadas de sua produção – de 2015 a 2022 – e permite ao público observar, entre outros aspectos, a recente ampliação do leque de cores de que Sheroanawe lança mão.
“Muito da produção inicial do Sheroanawe tinha, não vou dizer um limite da cor, mas sempre a referência ao preto e ao vermelho. Que é justamente uma conexão que o artista faz com as pinturas corporais e faciais da sua comunidade e de seu entorno. A gente encontra, por exemplo, sempre o preto, vermelho e branco fazendo referência à cobra coral”, conta André Mesquita, curador da exposição.
“Mas Sheroanawe expandiu a sua paleta de uns três anos para cá. Ele tem utilizado azul e amarelo, por exemplo, além de ter pintado também em tecido. Embora esses procedimentos, de alguma forma, tenham se modificado ao longo do tempo, claro que os temas de que ele tem tratado permanecem. É quase a criação de uma catalogação ou de um arquivo mesmo. Uma memória daquilo que ele encontra nos aspectos ritualísticos de sua comunidade, no fazer cotidiano, nos utensílios, bem como um registro da fauna e da flora que cerca a vida na floresta”.
David Ribeiro, assistente curatorial da mostra, destaca que a produção de Sheroanawe está muito “relacionada aos períodos em que ele fica na floresta, com as pessoas do seu povo”. Momentos em que ele recolhe referências diversas da “cosmo ecologia” de sua comunidade, “uma relação com o ambiente, com o cosmos, mais profunda e complexa”. Segundo Ribeiro, Sheroanawe observa os padrões que são utilizados na pintura facial, na pintura corporal ou na produção da cestaria, detalhes de animai, plantas, pedras.
“E é um olhar bastante minucioso que ele lança sobre o entorno, sobre as pessoas, sobre o ambiente onde ele vive. E do qual ele vai extraindo sínteses”, diz. “Numa floresta, nessa confusão de elementos, Sheroanawe busca as unidades mínimas dessa grandiosidade, pequenos símbolos, que ele transpõe para o papel, que são representações dessa complexidade. Como a Laura Barbata afirma, o trabalho dele é mais do que abstração simples ou minimalismo, é um mapa bastante complexo de uma infinidade de significados que ele apreende a partir de sua observação”.
Mesquita comenta que, inicialmente, ao observar a produção de Sheroanawe, uma relação com o minimalismo veio à sua cabeça, um pouco por causa da sua formação “como pesquisador, muito interessado, já há muitos anos, nas práticas da arte conceitual”. Em algum momento, afirma o curador, aparecem na prática de Sheroanawe “processos como a serialização a repetição”, que já vimos em diversos trabalhos de artistas norte-americanos, europeus ou brasileiros.
“Mas a gente não faz essa leitura da obra do Sheroanawe e nem tenta canonizá-lo, no sentido de trazer sua produção para uma leitura ocidental”, pondera o curador. “O que eu acho, muitas vezes, é que o trabalho dele se encontra com todos esses trabalhos tidos como conceituais, minimalistas, mas ele tem uma natureza diferente. De alguma maneira, a presença dele subverte um pouco esse cânone, aquilo com que a gente está tão acostumado. O trabalho dele traz essas fricções, essas tensões”.
Para Mesquita, a escolha de Sheroanawe pela repetição, serialização ou minimalismo se dá “em referência às pinturas corporais da comunidade, numa busca por preencher todos os espaços possíveis, numa folha de papel, com um mesmo símbolo, que é um pouco dessa prática que a comunidade tem da pintura corporal de preencher todo o corpo com o mesmo desenho”, conclui.
Por fim, Ribeiro ressalta também como Sheroanawe tem um olhar muito sensível para a floresta e atribui uma grandiosidade para coisas às quais a gente mal dá importância, a exemplo de uma gota de orvalho numa teia de aranha pela manhã. Ele salienta, ainda, que o artista coloca tudo em pé de igualdade, seja a pintura facial, uma pata de animal, uma folha, tentando nos dizer que tudo isso é a mesma coisa.
“E não à toa esse foi o título que ele sugeriu para a exposição, tudo isso somos nós. Tudo aquilo constitui o povo ianomâmi. Não existe diferença entre o que é humano, o que é animal, o que é vegetal e o que é mineral. Tudo isso precisa ser conservado em conjunto, cuidado em conjunto. É um conceito de meio ambiente de uma sofisticação muito grande”. ✱