O que tornam as esculturas do baiano Agnaldo dos Santos (1926-1962) mais prestigiadas pelo sistema da arte do que as carrancas de seu conterrâneo – e confessada referência em sua formação artística – Mestre Guarany (1884-1985)? Ou ainda a produção da pintora pernambucana Lúcia Suanê (1922-2020) abismalmente menos valorizada do que as obras de Alfredo Volpi (1896-1988), com quem guarda aproximações poéticas e de linguagem?
Na exposição Reversos e Tranversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais, em cartaz na Galeria Estação, o artista e curador Ayrson Heráclito investiga como questões de raça ou gênero, entre outras, provavelmente estão na base da paulatina segregação ocorrida entre os artistas ditos populares e aqueles tidos como eruditos, num processo consolidado ao longo de sete décadas pelas bienais.
“O Volpi, este artista imigrante italiano, que havia sido pintor de paredes, foi eleito por um grupo como um grande mestre, de grande inteligência formal, o que o retirou de um limbo de artista primitivo, sem elaboração. Quase contemporânea do Volpi, a Lúcia não teve essa mesma sorte. Será que foi uma questão de gênero?”, questiona Heráclito, em entrevista à arte!brasileiros. “Ambos, como artistas, foram próximos, mas hoje existe uma grande distância de legitimação. Então, fazemos nesta mostra uma ponte entre os artistas para salientar o abismo que há entre essas produções no reconhecimento pelo sistema da arte brasileira. Volpi não é esteticamente superior a Lúcia; ambos são muito importantes em suas construções e complexidades. Mas não são vistos nesta horizontalidade”.
Reversos e Transversos começou a ser concebida no ano passado, depois que Vilma Eid, galerista à frente da Estação, viu a exposição Yorùbáiano, em que Heráclito reuniu na Pinacoteca de São Paulo quase 40 anos de sua minha produção artística. Eid já conhecia também seu trabalho como curador, na mostra Histórias afro-atlânticas, apresentada em 2018 pelo Masp. Heráclito, por sua vez, considera-se um “grande visitante” da Estação, “galeria que tem um acervo muito diverso, sobretudo de artistas afro-brasileiros e, mais recentemente, cada vez mais artistas indígenas”.
Convite aceito, o curador, que também é um dos artistas selecionados para 35ª Bienal de São Paulo, inicialmente pensou em fazer mostras individuais na galeria, “nomes que eu achava importante apresentar para galeria e apresentar, principalmente, para o sistema da arte de São Paulo”, diz. “Com o desenvolvimento das nossas conversas, surgiu a ideia de fazer algo no contexto da 35ª Bienal. Veio então a ideia de pensar em muitos artistas, que estão na galeria, e tiveram uma história na legitimação das bienais, sobretudo as de São Paulo, na Bienal Latino-americana, na Naïf e na Mostra do Redescobrimento: Brasil+500”.
A exposição reúne trabalhos realizados com técnicas e suportes distintos, por 42 artistas de diferentes gerações, criações em sua maioria pertencentes ao acervo da Estação. Colocadas lado a lado, as obras falam por si mesmas: ora estética, formal ou tematicamente parelhas, indagam por que alguns artistas foram reconhecidos e outros, não. Além dos exemplos citados acima, Heráclito menciona Antonio Poteiro (1925-2010) em contraponto com Djanira, Marepe (1970) e Alcides Pereira dos Santos (1932-2007) e ainda um caso emblemático:
“Em 1951, na primeira Bienal de São Paulo, existiam muitos desses artistas [tidos como populares] na seleção da mostra. E o Heitor dos Prazeres [1898-1966], que é esse grande artista multimídia, que está sendo muito celebrado hoje, com uma grande exposição CCBB, e mostras paralelas em galerias privadas, ganhou uma medalha de prata, com a tela Moenda, lembra o curador. “O Heitor é um artista importantíssimo para pensar justamente esse momento de virada de uma arte moderna para uma arte, digamos assim, pop. Em seguida, a gente vai assistindo esses artistas sendo desconvidados, de certa forma, ou não convidados para participar das bienais”.
Heráclito conta que em suas pesquisas para Reversos e Transversos conseguiu identificar “alguns momentos até muito tensos, ao mesmo tempo reflexivos”, quando, por exemplo, na Bienal de São Paulo, a pop art entra no Brasil, com artistas como Andy Wahrol, Rauschenberg, Jasper Johns e Roy Lichtenstein. “Com a chegada deles a essa instituição importantíssima no mundo inteiro, que cria sistema de arte, os artistas ditos populares saem, são desconvidados, porque perdem espaço. E nesse momento se articula uma nociva ideia de que a arte contemporânea brasileira não poderia ser compreendida a partir daquelas referências populares”, afirma.
O curador ressalta que artistas como J. Cunha (1948), Aurelino dos Santos (1942) e mesmo Heitor dos Prazeres estabelecem relações “com um pop, com essa cultura de massa, a partir dessa perspectiva dos grandes centros urbanos, das grandes cidades”. Ainda assim, são alijados do sistema da arte. Entre os contemporâneos também presentes na exposição, Heráclito cita Xadalu Tupã Jekupé, selecionado para a 1ª Bienal das Amazônias, e Dalton Paula (1982), para ele um “exemplo de superação”.
“Quando começou a produzir, Dalton estava muito mais próximo da Bienal Naïf – um termo que acho muito preconceituoso, porque retira do artista o conhecimento e a sabedoria; é como se conhecimento fosse alguma coisa só acadêmica ou livresca – do que da Bienal de São Paulo. Hoje é um dos poucos artistas contemporâneos brasileiros que estão em grandes museus do mundo como MoMA. Justamente porque o mundo está mudando. Os conceitos estão sendo transformados, assim como a historiografia da arte, não só brasileira, mas mundial”.
MODERNISTAS, LINA E ABDIAS
Heráclito pondera que o “embate da arte popular como uma arte identitária no Brasil” teria sido inaugurado, de certa forma, pelos modernistas. “Foram dois projetos modernistas que se destacaram naquele período: o sudestino, em torno de Mário de Andrade, da antropofagia etc., e o nordestino, em torno de Gilberto Freyre, com o movimento regionalista”, lembra. “Esses dois projetos são muito distintos, mas tinham algo em comum, que era pensar a cultura popular como a identidade da arte brasileira, já que no século XIX toda a produção de arte brasileira era uma cópia da Europa. Mas os modernistas ainda vão estabelecer uma dicotomia entre a arte do povo, primitiva, autodidata, e a arte da elite, acadêmica ou uma arte mais de vanguarda”.
Segundo o curador, entre esses dois polos modernistas, Lina Bo Bardi (1914-1992) e Abdias do Nascimento (1914-2011) foram fundamentais em sua luta para “para desmanchar, dissolver essa dicotomia entre o erudito e o popular”, algo que busca reverberar em Reversos e Transversos. Para Heráclito, Lina foi muito importante porque começou a pensar os espaços expositivos de uma forma imersiva e refletir, sobretudo, sobre a questão afro, a questão indígena e a formação da própria cultura brasileira.
“E essa é uma cultura que se constrói a partir de diálogos, de negociações entre toda essa diversidade que é o Brasil. Mas Lina começa a construir todo esse sentido de uma forma não hierárquica, ela coloca tudo no mesmo patamar. Uma escultura do Aleijadinho com um ferro de um santeiro, como José Adário (1947). Uma carranca de Mestre Guarany com uma pintura de Portinari (1903-1962) ou Djanira (1914-1979)”, diz.
Já Abdias do Nascimento, ressalta o curador, promoveu uma reflexão importante em sua formação: aqueles artistas populares, ditos primitivos, eram tratados daquela forma porque eram negros. “Ele me ensinou, também, que dentro da história da arte brasileira há o racismo estrutural. E pensar esse racismo estrutural, a misoginia, as questões de gênero e sociais para mim é fundamental para desenhar os novos caminhos da história da arte brasileira”, argumenta.
“O que nós estamos fazendo com essa exposição é tentar escrever um capítulo, um artigo, sobre esses temas. Por isso que os textos [apresentados na mostra] são muito importantes para acompanhar não só o que está sendo exibido. São um discurso, um posicionamento político e ideológico frente a questões que são importantíssimas”, afirma. “E esse período da Bienal é um momento mais que perfeito, porque existe uma confluência muito grande. Não é à toa que a Bienal de São Paulo, nessa edição, é mais negra, feita não só por artistas, mas também curadores negros”.