A historiadora francesa Anne Lafont
A historiadora francesa Anne Lafont

Autora dos livros Uma africana no Louvre e A arte dos mundos negros: História, teoria, crítica, recém-lançados no Brasil pela Bazar do Tempo, a historiadora francesa Anne Lafont esteve em São Paulo em agosto, a convite do MAC USP, para ministrar uma disciplina de pós-gradução, patrocinada pela Terra Foundation. Na ocasião, Lafont nos deu a seguinte entrevista:

ARTE!✱ – ​ Conte-me um pouco sobre o impacto do seu livro Uma africana no Louvre sobre o público, em torno da questão da representação do negro na arte. Houve algum desdedobramento de seus estudos por parte de outros pesquisadores? Reflexos em instituições, principalmente na França, ou talvez noutros países europeus? Elas repensaram a forma como formulam suas práticas curatoriais para suas coleções?

ANNE LAFONT – Partimos de uma ideia um tanto simples da representação do negro nas artes plásticas, principalmente na Europa e na França, e acabamos fazendo uma reflexão sobre os meios visuais do conceito de raça, como a raça se materializa visualmente. Eu diria que a mostra Le modèle noir de Géricault à Matisse, que ocorreu no Louvre [e foi ponto de partida para Uma africana no Louvre], foi um momento muito importante na história das exposições na França, uma grande exposição sobre um assunto que não tinha sido tratado nessa escala lá na França.

Foram muitos visitantes, acredito que mais de 400 mil, e isso também transformou a maneira como os museus na França passaram a trabalhar essas questões relacionadas às comunidades que formam a sociedade francesa. Houve realmente um efeito cascata no final.

No mundo acadêmico, devo dizer que há duas fases de recepção do meu trabalho. São os historiadores que inicialmente se interessaram pelo meu trabalho, mas os historiadores na França foram mais relutantes a este tipo de abordagem pós-colonial. Porém, estão começando a surgir gerações mais jovens muito mais interessadas nesses assuntos. Já no universo dos curadores de museus, demorou um pouco mais. Foram antes de tudo historiadores e antropólogos que realmente se interessaram pelo meu trabalho, e por isso que fui contratada pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, um instituto de estudos avançados com pesquisadores que são antropólogos, filósofos, sociólogos, historiadores, historiadores da arte. As coisas estão começando a mudar, mas é um processo um tanto mais longo.

Foi com, eu diria, a transformação da representação do negro de sujeito de pintura, em modelo, que no século XIX mais algumas modelos femininas foram representadas. Mas ao longo dos séculos XVII e XVIII, o que havia eram essencialmente jovem homens em posição de serviço. No século XIX, temos a chegada de uma série de modelos femininas negras que realmente vão aparecer mais na arte francesa. Acho que as mulheres negras estavam mais presentes nas colônias francesas, onde não havia um meio artístico tão bem constituído como na França continental. Os pintores trabalharam mais em Paris do que nas colônias e, portanto, somente no século XIX, quando as comunidades negras se instalaram mais na França metropolitana, houve mais mulheres presentes e representadas.

ARTE!✱ –  Até que ponto existem semelhanças e diferenças entre a representação dos negros na arte francesa em relação às suas colônias e a representação europeia em geral dos escravizados no Brasil, por exemplo?

ANNE LAFONT – Para mim são imagens que circulam no espaço atlântico e, no século XIX, em torno de Debret e da Missão Francesa no Brasil, temos imagens que são reinvestidas da cultura visual francesa. São artistas que moram no Brasil e que, portanto, descrevem o que veem, quando voltam para a França. O que talvez seja fundamental nas experiências europeias do Brasil é o acesso a uma forma de crueldade do ambiente colonial brasileiro, ou de qualquer outro lugar que não é imaginável na Europa quando estamos longe da própria experiência colonial. Um acesso a algo muito mais cru e direto sobre a experiência da escravidão, do que quando a gente fica apenas em algo que é metropolitano, que é distante em relação à escravidão. Acho que Rugendas, Debret ou outros dão mais uma vez, por meio da litografia, da gravura etc., um acesso totalmente direto às experiências dos negros escravizados no Brasil.

ARTE!✱ – Uma questão que oferece outro tipo de perspectiva histórica: é possível comparar o debate decolonial de hoje com os movimentos negros pelos direitos civis das décadas de 1960 a 1980? Por que ou por que não?

ANNE LAFONT – Isso exigiria um estudo comparativo muito, muito aprofundado, mas o certo é que precisamente o espaço crítico gerado por pesquisas como a que estou realizando, assim como aquele do interesse pós-colonial, não é estranho ao que a própria sociedade exige. Explica uma história que tem sido demasiado monolítica, ou seja, o próprio fato de a sociedade civil, por assim dizer, exigir maior justiça social não está alheio ao desenvolvimento do pensamento crítico que fornece os meios para compreender precisamente as raízes desta forma de desigualdade, e que existia, por isso não creio que os pesquisadores sejam alheios aos movimentos sociais e políticos do seu tempo.

Nesse sentido, como nos anos 1960 nos Estados Unidos, como na França hoje, o fato de a sociedade estar mais uma vez exigindo justiça social e uma melhor distribuição das coisas, isso não está em descompasso com o tipo de projeto que venho levando adiante, em que tentamos compreender a história no longo prazo, mais precisamente da história francesa em conexão particularmente com a comunidade negra. Nesse sentido, é comparável ao período da luta pelos direitos civis, ou seja, os pesquisadores são cidadãos e não estão em descompasso com o movimento que os cidadãos manifestam na sociedade. Ganhou força nas universidades e até mesmo por um tempo nas redações de jornais, bem como em setores da sociedade, através da cultura, entre outros agentes.

ARTE!✱ – Nos últimos anos, a teoria racial crítica ganhou força nas universidades e chegou até às redações de jornais como o The New York Times, bem como a setores da sociedade, por meio da chamada cultura. Entre outros autores, James Baldwyn e Frantz Fanon ressurgiram. Achille M’bembe levantou a questão da necropolítica. O racismo estrutural entrou na agenda dos governos progressistas e até das empresas, que por vezes parecem fazer um black washing – numa referência ao greenwashing, de uma falsa sustentabilidade para fins de marketing. Esta miríade de reflexões, perspectivas, proposições etc. contribui para o debate sobre a decolonialidade, ou pode por vezes criar ruídos, dissonâncias, desvios ou distrações?

ANNE LAFONT – O debate tenta fazer barulho, provocar dissonância e distinção. O próprio debate tem ese efeito, ou seja, não podemos ter uma discussão aprofundada sem que se tomem posições muito diferentes. É inevitável e, neste sentido, não significa que cada indivíduo que participa do debate cause ruídos. Mas faz parte do debate, ou seja, não podemos levantar uma questão nova, colocar ideias novas em pauta sem que isso faça barulho, atrapalhe a ordem estabelecida, perturbe necessariamente a forma de pensar. Há todos os tipos de posições que vêm alimentar este debate e, pessoalmente, individualmente, podemos escolher uma linha muito pessoal e precisa, mas que faz parte de um debate muito mais acalorado, e eu não vejo como uma sociedade se transforma sem fazer barulho, isso não é possível.

ARTE!✱ – Sabemos que o identitarismo mais pernicioso e dissimulado do mundo é o identitarismo branco, que nos Estados Unidos vem atualmente manifestando sua face terrorista com os supremacistas brancos. Ao mesmo tempo, sabemos que também existe certa cacofonia na luta identitarista negra, envolvendo, por exemplo, visões distorcidas do colorismo, assim como a criação do que, para a sociedade branca, são ressalvas, personagens midiáticos que, por sua recorrência em fóruns presenciais ou virtuais, consolidam-se como figuras de exceção entre os negros. Isso ocorre entre atrizes, atores, cantores, escritores e até mesmo já tivemos no Brasil um ministro da Suprema Corte. Eles alcançam notoriedade, não raro em detrimento da coletividade, de seus pares, e em benefício próprio. Esta segmentação ou dispersão de pensamento e ação afeta negativamente o debate decolonial?

ANNE LAFONT – Não, na verdade existe um pensamento negro plural, e isso é muito bom. Existem posições muito diferentes de um indivíduo para outro na mesma sociedade, mas ainda mais em escala mundial, das experiências das mulheres negras em Paris, àquelas das dde Benin. O pensamento negro é muito complexo e muito diversificado. É preciso ouvir as pessoas que têm algo a contribuir, mas é uma mais-valia. Não é falta de profundidade nem de eficiência, é uma riqueza que é em última análise uma pluralidade de pontos de vista, e há pontos de vista com os quais não concordo. Tem gente que não concorda comigo, e isso é muito bom para eles. Por fim, não existe um pensamento negro monolítico, existem diversas experiências, existem diversos pontos de vista, existe um pensamento crítico múltiplo, e isso é uma coisa muito boa.

ARTE!✱ –  Em todo o mundo, tem havido grande visibilidade para artistas negros que tematizam problemas históricos e contemporâneos da negritude, eles próprios resultantes diretamente de processos coloniais. Assistimos também a um boom no mercado, com um maior número de galeristas, incluindo negros, cujos portfólios são dedicados a artistas africanos ou da diáspora. As instituições e os seus curadores estão seguindo a tendência que atualmente parece estar a pasteurizar o ecossistema artístico em todo o mundo. Grandes conglomerados de luxo contratam esses artistas para colaborações de moda. Como nos disse o curador e artista Kader Attia, em entrevista: “O capitalismo tenta se recuperar, através da cultura e da arte, apropriando-se de mensagens políticas, como a da decolonização, e com isso corremos o risco de que elas se institucionalizem. Ou seja, é preciso saber cuidar da retórica, inventar uma linguagem, vocabulários sempre novos, quase novos, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.” Você vê esse risco na produção artística negra atual, de um simulacro crescente de crítica a serviço do capitalismo, de um pastiche de arte decolonial?

ANNE LAFONT – A arte colonial não está mais imune que todas as formas de arte e de valorização pelo mercado, ou seja, seria muito ingênuo pensar que o capitalismo é menos forte face aos seus pensamentos. O capitalismo é sempre mais forte. O esforço artístico pós-colonial e decolonial está sujeito ao mesmo risco que todas as formas de arte. Não há razão para pensar que desta vez o mercado não iria captar uma tendência que é generalizada. O risco está sempre lá, nem mais nem menos do que todas as formas de arte que se expressam, que encontram um alcance internacional etc. Sim, penso que é um risco, mas cabe aos artistas ao mesmo tempo encontrar os meios de expressão para escapar, se quiserem fazê-lo, deste tipo de padronização por parte do mercado de arte ou por parte do capitalismo.

 

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