Hilma af Klint é uma artista excepcional. Nas várias acepções do termo. Sua obra não é apenas seminal, antecipando em vários anos o início do abstracionismo, como apresenta uma qualidade estética rara, aliando sutileza formal e cromática a uma intensa espiritualidade. A isso se soma sua história singular. Formada na Academia Real de Belas Artes da Suécia (a segunda do mundo a aceitar alunas mulheres), em 1887, foi uma artista de relativo sucesso, dedicando-se à paisagem, ao desenho de botânica e às ilustrações de livros, revistas e jornais. Tinha, ademais, um interesse profundo pela ciência e pela religiosidade, o que acaba a levando pouco a pouco ao trabalho de fôlego que pode ser visto atualmente na Pinacoteca do Estado.
A mostra, que permanece na Pinacoteca de São Paulo até meados de julho, traz pela primeira vez à América Latina algumas das séries mais emblemáticas feitas por Hilma nas primeiras décadas do século XX e que foram escondidas do público por quase um século – primeiro por ordem da artista, que assim o determinou em testamento, e, em seguida, pela dificuldade do sistema de arte de compreender e absorver sua obra. Afinal, não deixa de ser surpreendente que uma mulher, imbuída inicialmente por uma missão de cunho espiritual, tenha antecipado de maneira tão evidente pesquisas que viriam a tona pelas mãos de mestres consagrados como Kandinsky e Mondrian, eles também interessados pelo plano metafísico.
Logo na entrada da mostra, o visitante é recebido por 10 pinturas gigantescas, de quase 3,5 metros de altura, que representam as dez idades da vida humana, da infância à velhice. O conjunto tem uma imponência e um forte poder de sedução, com suas sutilezas cromáticas e abstracionismo orgânico muito particular. Foram realizadas num fôlego só, ao longo de 40 dias, em 1907, o que dá uma média de quatro dias para a confecção de cada uma delas. O conjunto faz parte de uma ampla pesquisa desenvolvida por Hilma seguindo instruções que lhe foram dadas por entidades externas, que lhe pedem que faça um ciclo de pinturas para um templo. Ela é, nas palavras do curador Jochen Volz, “das primeiras e mais monumentais obras de arte abstrata do mundo ocidental”.
A majestuosidade das “Dez maiores”, como são chamadas, não sombreiam os outros grupos de trabalhos selecionados na vasta produção de Hilma. O visitante descobre, sala a sala, como o trabalho desdobra-se em diferentes campos de pesquisa, desde uma investigação sobre o átomo, até uma sublime representação das religiões do mundo a partir de pequenas variações compositivas a partir de uma simples estrutura circular.
Esse lado místico, fundamental em sua trajetória, se deu de maneira diferenciada ao longo do tempo. Das primeiras experiências mediúnicas com um grupo de outras quatro amigas, intitulado De Fem (As Cinco) – representadas na exposição por um conjunto amplo de desenhos e escrita automáticos, técnica que adquiriria status artístico apenas na década de 1920, com as experiências surrealistas – até experiências mais tardias, como a série “Da observação de flores e árvores”, de 1922 (uma impressionante integração entre o visível, o energético e uma ordem espiritual), há uma mudança de tônica. As vozes antes externas, atribuídas a “mestres elevados” tornam-se pouco a pouco internas.
Especialistas atribuem essa tônica menos ligada ao espiritismo e mais anímica à aproximação de Hilma com Rudolf Steiner, fundador da antroposofia. Ele é o único a receber autorização para ver, em 1908, os trabalhos que ela vinha desenvolvendo e se encanta com a série “Caos Primordial”. E a relação entre eles se mantém ao longo do tempo. Nos anos 1920, após a morte da mãe, ela passa a visitar com frequência o Goethearum, sede do movimento antroposófico, onde se dedica a estudar a teoria das cores, de Goethe, reeditada por Steiner. Como explica Volz, “Se tivesse mostrado isso na sua época, muito mais machista, provavelmente seria declarada um caso clínico”.
Tal espanto com a ousadia de sua obra, que se quer sempre totalizante, buscando a unidade de campos tão potentes como a ciência, a religião e a arte, não é algo exclusivo do início do século XX. Em 1987, por ocasião da exposição de arte abstrata em Los Angeles na qual sua obra foi mostrada pela primeira vez, um crítico chegou a tentar recoloca-la novamente no espaço secundário – e invisível – ao qual as mulheres eram relegadas, invertendo a seu favor o discurso em prol da igualdade, ao afirmar que ela “nunca teria recebido esse tratamento intumescido se não se tratasse de uma mulher”.
Apesar de trabalhar de forma intermitente, deixou mais de 26 mil páginas manuscritas e datilografas, nas quais esclarece a organização interna de seu trabalho, procura explicar e organizar a infinidade de simbologias presentes em sua obra, formadas por um entrecruzamento complexo entre formas geométricas, símbolos, letras e cores. E também um conjunto de 1,2 mil pinturas, desenhos e aquarelas. Morreu aos 82 anos, vítima de um atropelamento, e seu herdeiro, o sobrinho, respeitou seu desejo expresso em orçamento de manter guardadas por mais 20 anos suas obras não-figurativas. “Não há dúvida de que ela tinha absoluta ciência de seu próprio tempo, do vigor de suas imagens e do potencial destas para o futuro. Ela tinha muito claro o que fazia”, explica Volz, lembrando que mesmo depois da abertura das caixas, foram necessárias mais duas décadas para que seu trabalho começasse a adquirir visibilidade. Apenas em 2013, é realizada uma retrospectiva itinerante de sua obra, começando pelo Moderna Museet, de Estocolmo.
Para a mostra de São Paulo, foram escolhidas 130 obras, enfatizando a estrutura serial adotada pela artista, rara em sua época. Algumas delas nunca foram mostradas anteriormente. Segundo Volz, a presença da obra de Hilma na Pinacoteca ajuda a sublinhar os diálogos muito fortes entre sua obra e a arte brasileira, como um embate muito forte entre a forma geométrica e orgânica, a força do sincretismo religioso e a ideia de universalidade.