Tom Zé abre
O cantor e compositor Tom Zé em seu apartamento em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

O mês de agosto, aquele do desgosto no imaginário popular, abriu a temporada 2009, em São Paulo, desafiando o poder desta bobagem supersticiosa. Nos palcos do Teatro Fecap, o baiano Tom Zé, com sua irreverência e a incrível capacidade de estimular a plateia, de armar jogos, de instigar e dar asas à imaginação, passou a limpo quase cinco décadas de carreira. O balanço final de tal empreitada jamais combinaria com algo amargo como o desgosto. Foram quatro shows, dirigidos por Charles Gavin e Oscar Rodrigues Alves, que ganharão registro em novo CD a ser lançado pela Biscoito Fino e um DVD, que será veiculado como especial pelo Canal Brasil, ambos intitulados Retrospectiva – Espinha Dorsal da Carreira e com lançamento e estreia na grade do canal previstos para novembro. Gavin, que tem feito o papel de um verdadeiro titã na defesa da memória da música brasileira ao resgatar do total ostracismo a obra de gente da estatura de Tom Zé, como Sérgio Sampaio, Gerson King Combo, Os Cobras, União Black, Quinteto Ternura e um sem-número de outros grandes artistas, reiterou, em nota à imprensa, a importância do projeto: “Tom Zé fará uma retrospectiva de sua obra, algo que raramente fez em sua carreira. Tocará, com sua banda, canções de álbuns importantíssimos como Grande liquidação (1968), Se o Caso é Chorar (1972), Todos os Olhos (1973), o superclássico Estudando o Samba (1975) e canções de seu trabalho mais recente, Estudando a Bossa (2008)”. A efeméride, de fato, merece celebrações, e, a despeito de algumas complicações de agenda, porque a notícia chega nos tumultuados dias de retorno de férias, encontramos Tom para uma deliciosa manhã de boas conversas e situações imprevistas.

1° Ato – O Juca Chaves dos pobres 

Tom Zé é um desses raros sujeitos que, ao longo da vida, desenvolveram uma apurada capacidade de criar raízes e estabelecer vínculos com as coisas que o cerca. Mora na mesma rua do bairro de Perdizes, em São Paulo, há mais de três décadas, tempo em que sempre esteve ao lado de sua valente e serena companheira, Neusa, que, talvez, rendida pela impossibilidade de se envolver com o jogo lúdico e instigante do marido, sempre o apoiou, incondicionalmente, e foi determinante em ajudar a construir essa figura mítica que é Tom, Antônio José. Ele nos recebe ofertando cadeiras, pede para ficarmos à vontade, vai até a janela, observa o dia e aponta para a enorme fachada do prédio em frente, onde voluntariamente cuida de um belo jardim que surge pleno, a coisa de 15 m abaixo de nossos olhos. Tom comenta que chegou ao bairro quando viveu naquele mesmo prédio em frente, a partir de em 1973 e depois de alguns anos de convívio com Neusa em uma avenida Angélica, que, segundo cantou em Augusta, Angélica e Consolação, cheirava a consultório médico.

O frio desta manhã é bastante rigoroso e ele recorda que, no começo dos anos 1950, o prédio fora construído de frente para a rota diária do sol justamente para aproveitá-lo ao máximo, porque São Paulo, regularmente, era metade do ano muito fria. Tom observa que as condições climáticas da cidade mudaram consideravelmente e lembra que lidar com um sol que já ardia intenso na janela, às seis da manhã, e que partia só às oito da noite, passou a ser algo insuportável. Foi a deixa para atravessar para o outro lado da rua.

É evidente que a São Paulo cantada por ele mudou em muitos outros aspectos, mas é possível suspeitar que Tom aprendeu a amá-la com todas suas grandes contradições, dilemas e complexidades, porque, desde sempre, ele atentou-se em interpretá-la e redimir-se de sua aridez de concreto em canções inusitadas, como a hilária A briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel. Mesmo a duras penas, como quando viveu quase duas décadas de completo ostracismo, ele não hesitou em inserir-se profundamente na metrópole que o recebeu, plena de possibilidades, e que o ajudou a moldar sua incrível personagem artística. Tom é um sujeito que, por exemplo, defende a rua Santa Ifigênia, zona comercial popular de componentes eletrônicos, informática e instrumentos musicais, no coração de São Paulo, como um lugar sagrado. Símbolo da capacidade do brasileiro de driblar adversidades, e ponto fundamental para viabilizar a criação de seus instrumentos, como o enceroscópio, feito à base de escovas mecânicas de enceradeiras, e as frequentes compras de componentes, muitas vezes, solicitados com surpresa nos balcões das lojas: “Mas para que o senhor quer isso? Isso é peça de torre de transmissão de televisão!”, recorda sorrindo.

Sobre a vivência na metrópole, resgato assunto que é comentado por ele em um texto intitulado Aniversário de São Paulo. Tom recorda o episódio, vivido com Gal Costa, em 1965, ocasião em que ele veio à cidade para integrar o espetáculo Arena Canta Bahia, de Augusto Boal, acompanhado dos amigos Gal, Bethânia, Gil e Caetano: “Gal e eu, a gente tinha um namoro meio atrapalhado. O dia em que ela me chamava pra sair era uma festa, porque eu nem tinha direito de chamá-la pra sair. Ela disse: ‘Tom, vamos fazer umas compras na cidade?’. Vestia uma calça comprida de casimira, daquelas calças de filme de Hollywood dos anos 1940, e eu estou com Gal, na rua, e todo mundo bolindo com ela, daí eu falei: ‘Pô, sou um homem de merda, mesmo, não é? Já sou acanhado pra diabo, aí tô aqui  com a moça e todo mundo bole com ela?!’. Gal não era conhecida, não era nem Gal Costa, ainda, era Gracinha. Depois de muito sofrimento, uma senhora teve a caridade de chamar a gente no fundo de uma loja e falar: ‘Minha filha, moça direita não sai de calça comprida em São Paulo. Quem sai de calça comprida em São Paulo é prostituta!’. Foi aí que a gente compreendeu tudo.”

A história descontrai, e o lado satírico de Tom, aos poucos, vai se aquecendo e começando a soltar faíscas. Já em 1958, em sua primeira aparição na televisão, ele deu amostras de sua deliciosa irreverência. No programa Escada Para o Sucesso, horário nobre da TV Itapoã, em Salvador, ele entra e defende uma de suas primeiras canções, debochadamente intitulada Rampa para o Fracasso. Ao lado do amigo Capinam, Tom compunha pequenos temas de protesto para o CPC (Centro Popular de Cultura), em Salvador, e, por esse mesmo deboche, era chamado de “Juca Chaves dos Pobres” nas páginas do jornal Diário de Notícias. Polêmico e sagaz, foi importante colaborador e teórico da Tropicália, movimento liderado pelos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, por um breve período, pôs de pernas pro ar as convenções musicais, políticas e comportamentais de um País que vivia a grande contradição de estar de portas abertas para um novo mundo, de apelos urgentes, sob a vigília ostensiva de militares no poder e a barra pesadíssima do Ato Inconstitucional número 5.

Apesar de exercer no grupo papel dos mais influentes no campo da teoria musical, graças aos sete anos que estudou com os maestros H.J. Koellreutter e Ernst Widmer, ícones da revolução radical proposta pelo reitor Edgar Santos na Universidade Federal da Bahia, naqueles primeiros dias da década de 1960, Tom, ao recordar o período, diz não ver muita afinidade nas coisas que ele fazia com as coisas produzidas por Caetano e Gil. Valia-se, diz, de ferramentas que aprendeu a manipular desde a infância, em Irará, quando lidou com preconceitos e total ausência de empatia com sua música, desafio que o fez criar saídas para a inviabilidade imposta pelos outros: “Deixe-me ver se lhe dou uma ideia do que aconteceu no começo. Eu procurava alguma coisa pra me segurar no mundo, esse é o motor primeiro, é o ponto de partida, e música não era assim uma coisa que estava muito evidente, não tinha nada daquilo de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou logo sua vocação!’. Era o caso de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou que não tinha a menor vocação para a música’. Eu fazia um tipo de música em Irará que era o seguinte, eu ia falar do seu trabalho, da roupa que você está vestindo, da maneira que você se pinta, dos objetos que você usa, de como você se sentia, imediatamente identificado como um personagem dentro da música e incapaz de ver que eu não era cantor, como se eu enganasse você. Minhas músicas eram feitas para impedir o ouvinte de descobrir que eu não era cantor. Comecei a fazer música que você, imediatamente, começava a pensar, por exemplo, que quando eu falava ‘Guilherme se requebra’, você já era personagem da canção”.

Éverton, o pai de Tom, parece ter carregado nos genes a mesma sorte do filho em ter a vida transformada pela força do acaso. Corria a década de 1920 e Éverton detinha o espólio de seu pai, que, seguindo a tradição do sertão baiano, havia sido enterrado dentro de um pote que continha as libras esterlinas que somavam toda a herança do patriarca. Caçula de uma família vitimada por vários problemas de saúde, sem nenhum irmão, os primeiros a pleitearem a divisão foram primos de segundo e terceiro graus. Cansado de lidar com tanta aqueles que apareciam para defender parentesco e direito às libras, Éverton decidiu convocar todos os pretendentes em um local neutro, para por um ponto final à questão da partilha. Saiu de lá com uma quantia ridícula, mas já na rua encontrou um vendedor de bilhetes da loteria federal que insistiu na venda da centena 459 e, batata, centena 459 na cabeça. Da noite para o dia, da condição de grandes privações, tornou-se renomado comerciante e emergente na sociedade de Irará, ingressando na família Santana, das mais tradicionais e com vários membros simpatizantes do comunismo.

Sobrinho de Fernando Santana, líder da UNE e futuro secretário geral do Partido Comunista em Salvador, Tom vivia cercado de informações e visões conflitantes de mundo. Observando os processos cultos dos tios e a linguagem do povo que circulava pela loja de tecidos do pai, em Irará, foi se tornando um poliglota da vida. Chegou até mesmo a enfrentar o preconceito de pessoas que diziam que “filho de rico” – onde ele bem ressalta: “Em Irará não tinha rico, tinha pobre remediado” – não podia estudar música, que isso era coisa de pobre. Sem nunca aderir ao Partido Comunista, mas influenciado pelo tio, ele foi estudar em Salvador e integrou o CPC, de forte apelo jovem, ao lado do amigo e poeta José Carlos Capinam, diretor do núcleo musical do CPC. Em paralelo, Tom dedicou-se aos estudos na UFB, fato que resulta em seu ingresso, anos mais tarde, no corpo docente da universidade: “Quando a gente era mais novo não tinha como não ser esquerdista, mas eu nunca fui do partido, não porque achava que o partido era indigno. Não fui do partido porque não tive vontade de ir, mas devo dizer que quando fui diretor de música do CPC, estive lá graças a Nemésio Salles, que tinha sido secretário geral do partido, e que, quando tive um desentendimento na casa de meu tio e ia voltar para Irará, me convenceu a ficar em Salvador. Devo o fato de estar aqui, hoje, graças a Nemésio Salles, que me deu condições de ficar. E foi o Partido Comunista, o velho partidão, que me pagou para ficar naqueles dias. Tenho esse débito com ele. Eu era diretor de música do CPC e com esses trinta cruzeiros por mês eu pagava minha parte no apartamento do Nemésio, dividido por ele, eu, José Alberto Bandeira, que era o então secretário-geral, e o cineasta Geraldo Fidélis Sarno. Éramos os habitantes desse apartamento, que foi o primeiro lugar invadido na hora em que estourou o golpe de 1964”.

Embora defenda uma postura apartidária, Tom é cidadão de plenas convicções políticas e se posiciona, sem ressalvas, quando defende seus pontos de vista. Ao enveredarmos por questões ideológicas que cerceavam o dia a dia de jovens com dedicado grau de participação, como ele, Tom relembra uma capa de revista do período e põe-se a discorrer sobre assunto que desemboca na crônica política dos dias de hoje: “Lembro da capa de uma edição da Revista Civilização Brasileira com um homem com um peixe sendo fisgado, uma reportagem sobre a pesca artesanal. Ora, naquela época o próprio censo dizia que a população iria dobrar e que a capacidade produtiva de alimentos também precisava dobrar pra não matar metade dessas pessoas de fome. A capacidade da pesca artesanal nunca iria chegar perto do que seria necessário, seria preciso desenvolver a pesca industrial, a reportagem explicava, e como é que nós vamos defender esse tipo de Brasil bucólico que a esquerda quer, esse tipo de Brasil que não abre as fronteiras para a modernidade e que mata gente de fome. Tinha argumentos como esse, que também explicam muito porque o Brasil bucólico que a esquerda queria não podia se conformar com o Brasil que, na verdade, Caetano e Gil introduziram na cabeça das pessoas, um pensamento que, mesmo sob a égide de uma ditadura, ia levar o Brasil a um salto imediato para a segunda revolução industrial. Nós, toda vida, fomos povo inventor. Na hora em que o avião ia subir, tivemos uma pessoa lá. Outro dia tava no jornal ‘morreu o pai da guitarra!’ (o guitarrista Les Paul, criador do célebre modelo homônimo de guitarra). Morreu o pai da guitarra uma porra! Pai da guitarra é Osmar e Dodô, que a fizeram muito antes, na Bahia. E é bom dizer que Santos Dumont só tem o nome dele citado porque a França tem grana, ele era Dumont e estava em Paris naquele momento. Se não, os irmãos Wright seriam os únicos donos da aviação. Era com isso que Caetano e Gil, conscientemente, estavam lidando. Ao mesmo tempo houve a atitude repressiva da ditadura? Sim! E o que a ditadura queria? Que nossos cérebros se diminuíssem, ora! Eu era namorado de uma professora e o salário dela foi instituído por João Goulart, três mil cruzeiros! Olhe o que significava isso: que as pessoas de capacidade estavam convidadas a ser professores, professoras, e salário nenhum pagava aquilo. Jango estava privilegiando o pensamento, o desenvolvimento das crianças. E o que foi que a ditadura fez? O contrário! Degradou completamente os professores. Veja como eles estão até hoje… Servindo ao capitalismo, nessa degradação do ensino. Isso é uma das coisas mais terríveis. Por que falta educação? Porque o governo não quer, claro! O próprio governo de esquerda que está instaurado no Brasil precisa, por exemplo, que o Nordeste seja miserável para poder lhe dar o Bolsa Família. Se o Nordeste deixar de ser miserável, eles não vão ter aqueles votos todos. É uma maravilha para o governo que o Nordeste seja a miséria que é, porque eles estão dispostos a todas as providências pra que, por exemplo, o Nordeste não possa melhorar e eles se eternizem no poder. É isso que está em jogo, na hora em que alguém mexe com a cultura da nação. E foi isso que Caetano e Gil fizeram com consciência, sabendo o que estavam fazendo”.

2° Ato – Saudades perfumadas

A prisão e exílio de Caetano e Gil no final de 1968, e o consequente desmanche do grupo tropicalista, foi um difícil período inicial de transição, em que cada um iria seguir seu rumo. Gil, Caetano, Gal e Bethânia tiveram carreiras de grande apelo popular, enquanto Tom seguiu renitente em suas crenças, rumando o caminho que gente como Jards Macalé, o guitarrista Lanny Gordin e outros coadjuvantes da aventura tropicalista iriam, amargamente, experimentar, um ostracismo vergonhoso. Pergunto se essa ruptura, de alguma forma, também estabeleceu um rompimento dos velhos laços de amizade que havia entre eles, se ele ainda se relaciona com esses amigos e se Tom acha que, no campo artístico, ainda hoje, há convergência entre o grupo. Ele silencia brevemente e, depois, constrói um argumento conciso sobre o que considera suas escolhas e as escolhas dos outros: “Olha, vou dizer uma coisa, acho que não tínhamos nenhuma afinidade. Quando nos juntamos e conhecemos as músicas uns dos outros, eles decidiram que eu ia ficar junto deles e fizemos juntos o primeiro show, o segundo, viemos juntos pra cá fazer o tropicalismo e, na volta da Europa, após o exílio, eles decidiram que cada um deveria ir pro seu lado. Na hora em que eu entrei no lance todo não sabia que seria uma coisa tão grande, ou que eu estava me aproximando de gênios que, na verdade, eles são. Na hora da saída, e eu já sabia disso, fiquei muito triste, até porque era uma perda muito grande de amizade”.

Tom Zé, show Fecap
O músico durante show dirigido por Charles Gavin, realizado no Teatro Fecap, em agosto de 2009, em São Paulo. Foto: Divulgação

Os loucos e tortuosos anos de 1968 a 1973 constituem o período de vida e morte de Tom Zé, na Tropicália. A despeito da perda de ideais e projetos coletivos, a dissolução do grupo, no entanto, abre seus horizontes. Quando ele propõe caminhos novos e radicais a partir do álbum Todos os Olhos, de 1973, por exemplo, adota procedimentos e escolhas que resultam em um intrincado mundo novo de sua capacidade autoral. Momento em que ele descobre veias abertas para canalizar toda sua prolificidade e capacidade de criação, fluxo que corre natural até hoje, com ele vivenciando 72 anos de experiências acumuladas.

Em 1979, Celso Favaretto publicou o livro Tropicália Alegoria Alegria. Nem sequer mencionou álbuns de Tom Zé na discografia do movimento, nem mesmo Liquidação Total, considerado experimento embrionário do movimento antropofágico. Pergunto se nestes idos de 1973 ele já desconfiava que estaria fadado a tal esquecimento. Tom se cala. Minutos antes, sobre a questão do rompimento de amizades, me intimou a ir “direto ao assunto”. Ele, então, organiza as palavras e coloca ponto final na questão: “No quinto aniversário do tropicalismo eu era tropicalista; era parte do grupo, da imprensa, da festa e de tudo. No décimo, como eu estava fora de circulação, comecei a ficar, assim, lembrado, apenas. No décimo quinto, eu estava quase fora. No vigésimo, eu já tinha desaparecido completamente. A RCA tem uma compilação de compactos do início de carreira do grupo todo (Eu vim da Bahia), e, ali você já vê que eu faço algo completamente diferente. Eles eram ‘bossanovistas’. Então, já estávamos separados há muito tempo. Mas eu, ao contrário, fiz um pouco de esforço a partir do momento que comecei a cantar com eles, nos shows na Bahia, no Teatro Vila Velha, em meu primeiro, segundo e terceiro discos. Fiz um esforço muito grande, pra conseguir botar o que eu produzia, que não se chamava de ‘música’, no apelo da música popular. Fui no Jornal da Bahia entregar minha última matéria e, por acaso, quando subi na redação, me disseram: ‘Caetano está aí, no terceiro andar’. Cheguei pra ele e falei: ‘Caetano, que saudades!’. Éramos realmente companheiros e amigos. E ele disse: ‘Poxa, Tom, cadê você? Eu já te disse que aqui na Bahia você só vai se aborrecer, bicho. Em São Paulo você pode se aborrecer também, mas pode ser que aconteça alguma coisa’. Eu, como tinha dinheiro, peguei o avião e vim pra cá. Neste mesmo dia de minha chegada, ele me apresentou o Sgt. Pepper’s dos Beatles, traduzindo música por música, porque sabia que eu não entendia porra nenhuma de inglês. Na noite do mesmo dia, ele me levou pra ver o Rei da Vela e fiquei convencido de que devia vir mesmo pra cá. As pessoas me diziam: ‘Como é que você pode estar envolvido com eles? Eles são artistas, você é um troglodita!’. Aquele tempo foi dos melhores em minha vida”.

3° Ato – Complexo de épico / Rampa para o fracasso

Os anos 1970 confirmam a eleição de certos mitos e meandros massivamente consolidados no estatuto firmado pela MPB e, à medida que seus pares de tropicalismo iam se tornando semideuses deste novo olimpo, herdando muito precocemente o status que o herói de todos, João Gilberto, levou quase uma década para experimentar, Tom foi trilhando o caminho inverso. Investiu cada vez mais em experiências de linguagem e na produção de instrumentos alternativos, criados a partir de lixo industrial, como engrenagens de enceradeiras, mecanismos de batedeiras de bolo, de máquinas de lavar e de buzinas de automóveis, sucatas que, graças a sua inventividade, ganharam resolução musical e tiveram sua funcionalidade dilatada em álbuns históricos em sua discografia, como, por exemplo, Correio Estação do Brás, de 1978.

Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 1993, Tom relembra que chegou a vender um imóvel na praia para investir na construção desses instrumentos que ele inventava e, assim, se definiu, na mesma entrevista, como incapaz de estrategiar procedimentos. Apesar de trilhar um caminho anticomercial que o levaria à obscuridade, Tom defende com veemência que não houve resistência de mercado, incompreensão ou nada que pudesse ser interpretado como motivo para seu fracasso, nada que não estivesse dentro dele mesmo.

Capa dos álbuns “Grande Liquidação” (1968) e “Todos os Olhos” (1973), dois clássicos da discografia de Tom. Foto: Divulgação

“Quando você não é tocado, no Brasil, tem uma coisa de dizer que você é vítima da cultura de massas, mas, como eu não tenho vocação pra vítima, fui trabalhar em casa. Eu não era chamado pra trabalhar na rua, não era chamado pra entrevista, não era chamado pra porra nenhuma. Então, ia pra casa trabalhar. Talvez o que mais me fez trabalhar durante esse tempo de ostracismo foi o fato de eu defender que a queixa não era meu lema. Não gosto de fazer queixa. Prefiro culpar a mim mesmo. Fiz esses instrumentos em 1978 e, dez anos depois, o Instituto Goethe chamou a imprensa brasileira, revistas, como a Veja, para ir ver umas bandas americanas que estavam produzindo músicas com instrumentos eletrodomésticos, e era a mesma manchete na Folha de São Paulo, no Estado de São Paulo. Mas daí, um redator da Veja escreveu, de cunho próprio: ‘O Instituto Goethe chamou a gente pra ver umas bandas americanas que usam instrumentos de trabalho ou instrumentos de cozinha e tal. Olha, não tem novidade nenhuma nisso, principalmente, fazendo o que fazia Tom Zé, em 1978, e que já era muito melhor. Eu tinha 15 anos, na época em que ele apresentou os instrumentos dele na GV’, disse o repórter. João Araújo, pai do Cazuza, por exemplo, queria me ajudar pessoalmente, era diretor da Som Livre. Ele já tinha sido meu produtor, e eu sabia que ele tinha uma possibilidade de diálogo. Fui a ele mostrar os instrumentos, e ele deixou rolar tudo do jeito que eu queria fazer. Quis lançar pela Som Livre, quis botar no festival da Esso, mas aí eu não sabia que a gravadora era quem escolhia os artistas para o festival. Eu ia ser ‘o artista da Som Livre’, mas meti as mãos pelas pernas. Quando fui ver não estava mais no esquema. Fui convidado pra um festival do Canal 4 e achei que não era para eu participar, que era bobagem, e também não fui. Então, ninguém tem culpa de nada. Você mesmo se mata, você mesmo é seu próprio algoz”.

Dessa condição declarada de autossabotagem, Tom mergulhou em um período sombrio, de extrema reclusão e improdutividade, agravado por problemas de saúde. Ele começa a pautar esses temas, mas, num salto temporal, subitamente passa a narrar a fantástica história de sua ressurreição para o mercado fonográfico e para a própria vida, por meio da descoberta ocasional de seu disco Estudando o Samba, de 1975, pelo americano David Byrne, líder dos Talking Heads, um dos pilares do movimento New Wave, surgido na efervescente vanguarda da Nova Iorque do primeiro quinquênio dos anos 1970. Sim, a transição do total anonimato para esta figura celebrada em Paris, Nova Iorque, Londres e Berlim, sugere um conto de fadas moderno e, convenhamos, já foi deveras explorada.

Tento, então, extrair de Tom algo que não tenha sido tão excessivamente narrado sobre esse período e ele retoma o raciocínio para falar dos dias amargos que precederam sua tardia redenção. “Eu estive muito doente, meu estômago era um órgão de choque, naquele tempo. Só fiquei bom quando comecei a fazer Tai Chi Chuan. Uma coisa milagrosa. Ia lá tomar massagem e tal, uma hora de meia dúzia de movimentos fantásticos pra cabeça, pro corpo, mas eu tinha vergonha de ir pra aula de Tai Chi Chuan. Sempre tendo vergonha… Pois bem, o oriente me salvou aqui. Em 1985, eu estava morto. Enganava Neusa. Levantava pra enganar ela, pra dizer que tava vivo. Eu tava morto. Não tinha energia nenhuma. Neusa, um dia, falou assim: ‘Por que não vamos na macrobiótica?’. Pra quem tá morto, aqui ou na macrobiótica, tanto faz. Chegando lá, o doutor me receitou uma semana de arroz, e como eu não podia comer nada antes, porque ficava mal do estômago, o arroz, feito benfeito, como a Neusa sabia e sabe fazer, era minha vitamina C. Depois de uns quatro dias meu intestino voltou a funcionar como não funcionava há muitos anos. Eu não sabia que meu problema era aquele. Eu já estava todo desgraçado. A mão não podia nem pegar em livro porque estava despelando, por excesso de ácido úrico. Tudo problema emocional. E, comendo errado, foi piorando. Daí, quando comecei a macrobiótica, passados os dez dias de arroz, eu era outra pessoa. Inclusive, teve um negócio engraçado: pude ter a experiência do que é uma droga pesada. Porque arroz depois do sexto dia, rapaz… Você pode imaginar, se seu cérebro era de um jeito e você passou 40 anos absorvendo toxicidades maiores, produtos e produtos que começam a circular no sangue e modificam o cérebro, aí você começa a voltar à mesma toxicidade que você tinha quando tinha seis meses… Rapaz! Aquilo refaz, novamente, conexões neurais que você não sabia mais, que o cérebro não sabia mais e é aí, então, que você sabe realmente o que é uma droga pesada”.

4° ato – Zénial

O título deste quarto ato é uma alusão à resenha de Com Defeito de Fabricação (1998) publicada na cultuada revista francesa Les Inrockuptibles. Tom separa diversas matérias, organizadas em um clipping, e exibe, sorridente, páginas do New York Times, Village Voice, das revistas Vibrations e Time Out, onde são celebrados, com entusiasmo, novos lançamentos e reedições de sua discografia, seus frequentes shows e a parceria com o grupo Tortoise. Cinco ou seis páginas de jornais e revistas que podem atestar a redenção de um homem, de tantas provações, que precisou confundir muito para esclarecer sua importância aos incautos e poder trilhar os mesmos degraus que o levaram ao mesmo porto seguro onde, comodamente, outros estão há décadas. Filho atento da tradição oral do Nordeste, Tom é verborrágico e persuasivo. Começa a falar em tom baixo, pausado, e vai envolvendo o ouvinte em uma teia de argumentos que se amarra e se estende com uma desenvoltura fascinante. No começo da entrevista ele próprio avisa que Neusa procura sempre regrá-lo, impõe horários fechados, mas que, no entanto, ele sempre extrapola o cronômetro de sua mulher. Diz que fala compulsivamente e desnorteia os pobres jornalistas que vão conversar com ele, gente que, na sua visão, deve passar horas polindo e tentando extrair algo objetivamente jornalístico do que colhe durante esses encontros. Discordo de Tom, e embora me preocupe em concluir o roteiro que havia elaborado, óbvio que eu sabia desde o princípio que estava lidando com um sujeito imprevisível. Sabia que a qualquer momento podia ter meu roteiro sabotado pela compulsão de Tom, o que não deixa de ser uma tremenda boa expectativa e uma sorte rara, visto que vivemos em um tempo onde tudo é cada vez mais previsível, asséptico e inofensivo.

Voltamos a falar da situação atual, dos dilemas e desencontros entre a indústria e o mercado consumidor de música, e concordamos que, se provocados os estímulos, o grande público e aqueles que produzem música com o propósito popular vão querer, sim, a informação e a experiência do novo. Alguns eventos culturais patrocinados pelos governos de diversas esferas estão aí, precariamente, a validar essa tese. Enveredo pelo assunto à procura de algum comentário de Tom sobre o lamentável episódio ocorrido na Virada Cultural 2009, no Teatro Municipal, no show em que ele revisitou seu álbum de estreia Liquidação Total, quando ocorreu o episódio da menina que, furiosa com a (des)organização caótica do evento, esbravejou, o xingou e saiu de costas para o público, de dedos médios em riste, logo na abertura de seu show. Pouco foi falado sobre tal episódio, na imprensa, nos dias que o sucederam. Lembro que, por alguns segundos, Tom e sua banda mergulharam em um silêncio constrangedor e se saíram com uma execução tensa e enérgica de São São Paulo, como que a sugerir que tudo aquilo fazia parte de nossas grandes contradições. Peço a ele uma leitura do episódio: “Que bom que você se lembrou disso. O normal seria eu dizer: ‘Agora não posso falar disso porque o público está aqui, estamos respeitando os horários, estamos atrasados e temos que fazer’. Os shows anteriores atrasaram e, consequentemente, o nosso também. Eu estava preocupado com isso e, ao mesmo tempo, tendo de administrar a situação de abandonar uma pessoa aflita, parecendo que eu estava desprezando da queixa dela. Como é que eu iria parar pra tomar providências com o que estava acontecendo lá fora? Pois foi por isso que eu fiquei parado, pensativo. A moça, depois, veio comentar o episódio. Disse que a polícia estava maltratando as pessoas, que pessoas credenciadas não conseguiam entrar”.

A bela imagem da atriz francesa Brigitte Bardot foi a fonte de inspiração para o retrato que foi capa da edição 26 da Brasileiros, feita pela fotógrafa da revista, Luiza Sigulem

Dois colegas cinegrafistas nos acompanham na entrevista. Um deles não hesita em nos interromper para ilustrar que, dois anos antes, houve o quebra-quebra na praça da Sé com o incidente do show dos Racionais MCs, episódio que fez com que, nos anos seguintes, segregassem o rap no parque Dom Pedro II. Tom retoma rápido o raciocínio: “É por isso que eu falo que é importante essas festas irem para as periferias, não ficar só aqui no centro. Eu fiz minha primeira Virada Cultural no Anhangabaú. Na segunda, me mandaram para um CEU na Zona Leste”. E a aceitação, questiono?: “Veja bem, você tem de fazer um certo cálculo. Em qualquer lugar que você for tocar as coisas serão sempre diferentes. Você vai ao Municipal e sabe que não vai encontrar em um show desses aquele mesmo ambiente. É diferente, mas, claro, é preciso tomar o curso das coisas com a plateia, receber um feedback da capacidade de interesse que a coisa provoca. Fiz até um número improvisado, que a gente faz raramente, e foi uma felicidade, como se as portas se abrissem e eles estivessem livres da televisão, da escravatura da televisão, por uma única noite. Não tem um patrão que quer desenvolver nas pessoas a violência, não tem esse patrão no comando”.

Reitero o argumento de Tom comentando que naquele mesmo dia, horas antes, vi um Teatro Municipal lotado assistir, extasiado, Arrigo Barnabé executar Clara Crocodilo em seus arranjos originais. Convenhamos que não se trata de música gastronômica, de fácil digestão, como definiu Umberto Eco. Tom, que já teorizou sobre o pagode e o funk carioca, tidos por muitos como sinônimos de decadência de nossa música, discorda de minha observação em defesa da liberdade de manifestação cultural: “Barnabé é há tempos um orgulho de São Paulo, mas quando uma coisa acontece aqui e agora é muito perigoso a gente querer julgar. O povo tem de ter toda liberdade do mundo pra fazer o que pensa e o que gosta, qualquer coisa que ele queira ou que ele possa. Augusto de Campos, desde a hora em que Caetano, em 1965, defende na Revista Civilização Brasileira a retomada da linha evolutiva da música popular brasileira a partir de João Gilberto, Augusto e os concretos, disseram: ‘É esse o homem da gente! Este rapaz tá dizendo alguma coisa’. Você vê como esses concretos eram espertos e ativos? Augusto, por exemplo, já valorizava e defendia até mesmo Roberto Carlos, que era o grande vilão da época, não é? O João Gilberto fala que, em 1969 ou 1970, quando tinha os famosos shows do teatro Paramount (Bossa no Paramount), que eram celebrados como ‘a verdadeira música popular brasileira’, ele estava na porta, um dia, na saída, e foi ver, como quem não quer nada o que acontecia ali. As pessoas nem se lembravam dele, fazia quase dez anos que ele não aparecia na televisão, ele entrou por um canto, alguém perguntou se ele havia gostado e ele disse: ‘Olha eu prefiro iê-iê-iê do que jazz retardado’. E é verdade. Quando Roberto fez seus primeiros discos de iê-iê-iê, aquele álbum da estrada de Santos (Roberto Carlos em Ritmo de Aventura), eram coisas que você, quando ouvia, inevitavelmente se arrepiava. ‘Quero que tudo mais vá pro inferno’ é tão bom, que Roberto Carlos agora proibiu. Não deixa tocar, não canta e não deixa ninguém cantar!”

No episódio do show da Virada Cultural, em 2009, em São Paulo, outro inusitado fato foi destaque, e ele diz muito sobre Tom Zé e sua inquietação em questionar papéis, estatutos e protocolos. Dezenas de fotógrafos espreitavam-se, à beira do palco, quando ele decidiu interromper o show para propor uma divertida inversão de papeis e convidou todos os fotógrafos a subirem no palco. Da primeira fila ele tomou uma das câmeras emprestada e pôs-se a retratar os fotógrafos. A despeito do descuido que teve com ele, em meados dos anos 1970 e ao longo de toda a década de 1980, Tom tem uma relação de generosidade e colaboração com a imprensa, que passou a demonstrar tamanho interesse tardio por ele e sua obra como se movida por certo sentimento de culpa e necessidade de justiça. Coisa rara, neste mundo de celebridades instantâneas inatingíveis, é justo destacar que Tom também dá total abertura a seus fãs, que travam contato quase diário e dialogam com ele, por meio do blog tomze.blog.uol.com.br.

O cantor e compositor durante o Festival Internacional da Canção, vencido por ele com a composição “São São Paulo”. Foto: Divulgação / Record

Tom começa a se preocupar com o horário, pois está envolvido na pós-produção do novo álbum. Atrasado para alguns compromissos vespertinos, precisa que o deixemos cumprir sua agenda. Minutos antes, nossa fotógrafa, Luiza Sigulem, sugere um flagrante, apenas de cueca, sentado, de pernas cruzadas em um banquinho, empunhando seu violão, uma alusão à célebre foto de Brigitte Bardot. Ele concorda, de imediato. Quando encerramos, Gregório, um dos amigos que filmou a entrevista, pede a Tom uma foto conosco. Ele consente, mas quando estacionamos a seu lado, ele faz um breve suspense e emenda, sorrateiro: “Aliás, pode tirar foto comigo, sim, mas só se for de cueca também!”. Sim, meus amigos. Foi assim, de calças arriadas, cantando Brigitte Bardot e com a sensação de roteiro desprezado e tarefa cumprida que nos despedimos de Tom Zé nesta manhã gélida de quarta-feira, em que o homem que escreveu Imprensa cantada ousou deixar a pobre imprensa quase nua.

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