Imagem da série 'Bastidores', de Rosana Paulino, 1997. Em exposição no MAM-SP, em 'O MAM, a marquise e nós no meio'.

*Por Theo Monteiro

 

O dia 13 de maio de 1888 foi durante muito tempo tido como um divisor de águas na história do Brasil. A partir daquele momento os negros deixavam de ser escravos para se tornarem cidadãos livres, graças à Princesa Isabel, que ao longo de décadas ganhou status de libertadora dos afrodescendentes. Essa versão, com o passar do tempo, não somente se mostrou incompleta como passou a ser duramente questionada pelo movimento negro. A narrativa construída em torno da data não somente desconsiderava o processo histórico rumo à abolição como tirava qualquer protagonismo dos negros na história, lhes atribuindo um papel de passividade e conformismo ao regime escravocrata. De acordo com essa visão, os negros, seriam supostamente desprovidos de agência, precisando que uma princesa branca lhes concedesse a liberdade.

Esta história oficial tem sido revisitada e desconstruída por diversos artistas contemporâneos, que abordam a questão racial em suas práticas artísticas, como é o caso de Paulo Nazareth, Moisés Patrício, Jaime Lauriano e Rosana Paulino. Se em 1888, os negros estavam excluídos do mundo das artes e da cultura (na época profundamente elitizado), agora os mesmos vem ganhando crescente destaque especialmente depois da última edição da Bienal de Veneza, que teve o primeiro curador africano da história, Okwui Enwezor. Nesta esteira, a Pinacoteca do Estado de São Paulo apresenta a exposição Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca dentro da qual são ainda produzidos uma série de debates ao redor da produção e recepção da arte produzida por afrodescendentes. Apesar do crescente reconhecimento no campo cultural, passados 128 anos da abolição da escravatura, parece que há no Brasil mais motivos para preocupação do que comemoração. A derrubada de um governo legitimamente eleito e a extinção de ministérios que são fruto de conquista histórica (Cultura, Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos), colocam novamente em risco os direitos das chamadas minorias, notadamente das minorias raciais. A ARTE!Brasileiros ouviu dois artistas negros brasileiros sobre o significado da data em 1888 e nos dias atuais.

Para Rosana Paulino, a sensação é a de ter dormido e acordado em 1888: “já começa pela retomada do lema positivista Ordem e Progresso de Marechal Deodoro. A elite governante que chega junto com Temer: branca, masculina e velha, tem uma absoluta falta de visão no que diz respeito ao projeto de País. Chega a soar como uma brincadeira de mal gosto” explica. Para ela, assistir conquistas de décadas serem destruídas em uma canetada é doloroso, mas ao mesmo tempo provocador. “O momento do luto existe e é importante, mas agora é hora de arregaçar as mangas e criar. Para mim, que sou artista, mulher e negra, criar é um ato de resistência. Meu trabalho sempre foi voltado para pensar questões que atingem a realidade brasileira, como o racismo”. A artista critica também a extinção do Ministério da Cultura, o que para ela será prejudicial a todos aqueles que trabalham na área. “É de uma falta de visão absurda. Qualquer país que se queira desenvolvido, moderno, sustentável, investe em economia criativa. É simples, lucrativo e não derruba uma árvore. Ao invés disso, essa equipe que acaba de assumir quer privilegiar a agricultura. Praticamente um retorno ao século XIX”. Ela acrescenta também que as minorias serão duramente atingidas pelas medidas que se iniciam e que isso poderá criar grande resistência “Essas pessoas vão começar já já a ir para a rua. Não estamos falando aqui da não criação de direitos, e sim da extinção de direitos criados. O Ministério da Cultura vinha criando políticas interessantes para dar visibilidade à produção de negros, mulheres, indígenas e periféricos, enquanto  o Ministério da Igualdade Racial permitiu que um altíssimo número de negros ingressassem nas universidades. A partir do momento em que essas pessoas sentirem que perderam isso, elas irão para as ruas”, conclui.

Já o artista Moisés Patrício afirmou ainda estar “digerindo” tudo o que aconteceu. “É muito difícil e violento assistir a esse retrocesso. As pessoas parecem tomadas por uma energia coletiva estranha, na qual muitas vezes sequer sabem o que estão desejando e as consequências disso”, numa referência direta ao Senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que defendeu o Impeachment da Presidenta Dilma Roussef e acabou se surpreendendo negativamente com a equipe ministerial do Presidente interino. Para Patrício, a abolição da escravidão é um passado muito recente e ainda não cicatrizado. Ele vê os avanços ocorridos desde 1888 como poucos e insuficientes, e critica a falta de aceitação dos negros na sociedade. “Este é um tema muito presente na minha obra, a questão da aceitação”. Famoso por Aceita, uma série de fotografias que ele fez de sua própria mão, Patrício afirma que a mão negra é ainda invisível pela maior parte da sociedade brasileira. O artista, por outro lado, reconhece que mesmo vítima de apagamento e repressão, a cultura afro brasileira se readapta à condições adversas, muitas vezes ressignificando práticas que a princípio a destruiriam. Ele cita como exemplo as religiões neopentecostais, que tendem a perseguir os cultos de origem africana e criminalizá-los. Apesar disso, o fato de a maior parte dos devotos dessas igrejas serem negros e antigos adeptos das religiões de matriz africana faz com que elementos africanos persistam e se misturem à nova religião. “Algumas coisas são extremamente parecidas, o que faz com que muitos negros vejam naquilo um significado”, explica Patrício. “Ao mesmo tempo em que os avanços foram poucos e duramente conquistados, existe toda uma dimensão que é forte e insiste em sobreviver”, conclui.

 

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