Há uma intensa delicadeza e grande sensibilidade nos textos do livro “Estratégias da Arte em uma Era de Catástrofes” (Cobogó, R$ 56), lançado agora no início do ano pela argentina radicada no Brasil Maria Angélica Melendi.
O título, mais adequado impossível para o atual momento do país, na verdade refere-se a um período mais amplo, que tem início nos anos 1960, por conta das ditaduras latino-americanas. Ela mesmo sai da Argentina em 1975, um ano antes da intervenção militar que tirou do governo a presidenta Isabelita Perón, para viver em Belo Horizonte, onde desenvolveu carreira acadêmica.
Professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Melendi segue lá coordenando o grupo de estudos em arte contemporânea Estratégias da Arte em uma Era de Catástrofes, que dá nome ao novo livro, iniciado há 20 anos na Escola Guignard, da UEMG.
Entre a Escola Guignard e a Universidade Federal, Melendi exerceu grande influência em uma geração de mineiros e mineiras nas artes que inclui Julia Rebouças, Cinthia Marcelle, Lais Myrrha, Sara Ramo, Marilá Dardot e Paulo Nazareth, entre tantos outros.
A publicação é uma reunião de 19 ensaios, escritos a partir dos anos 1990, selecionados pelo também professor da Federal de Minas Gerais, Eduardo Jesus, divididos em cinco sessões: Estratégias do Pensamento; Políticas da Memória; Arquivos; Monumentos; Espaços da Memória. A maioria deles foi publicado em revistas e coletâneas, especialmente estrangeiras, mas alguns são inéditos.
A delicadeza do livro está, em primeiro lugar, no respeito com o qual Melendi trata de cada obra de arte, o que não se vê em muitos ensaístas contemporâneos, que frente à uma produção complexa, muitas vezes preferem ironiza-la. Outra particularidade importante no trabalho da autora é a relação das chamadas artes visuais com outras produções culturais como a literatura ou a arquitetura.
No texto “Sobre as ruínas do futuro”, por exemplo, Melendi parte de uma estrutura de concreto na Alemanha, construída em 1942, para testar o solo de Berlim, transformando-se em uma estrutura abandonada, uma ruína, “o membro amputado de um corpo que nunca vingou”. A essa ruína ela vai agregando várias outras, seja a cidade de Brasília “congelada e imutável”, seja a cidade de Havana pelas obras de Carlos Garaicoa na 26ª Bienal, de 2003, ou mesmo uma intervenção de Seth Wulsin em um edifício abandona de Buenos Aires, chegando a obra de Ai Weiwei na documenta XII, de Kassel, em 2007. Essas sobreposições de histórias, ao contrário de muitos textos acadêmicos, não visam uma síntese, mas constroem-se em mosaico.
Com tal estratégia, Melendi acaba criando pequenos inventários de temais relevantes para a produção artística como o uso de mapas, não por acaso o tema do primeiro ensaio “Da adversidade vivemos ou Uma cartografia em construção”. Nele, a professora reúne desde o icônico “Mapa Invertido” da América do Sul, desenho de Joaquim Torres-Garcia, de 1946, ao desconhecido mapa de Marcel Duchamp, “Adieu à Florine”, de 1918, quando o pai da arte conceitual deixa Nova York para viver em Buenos Aires. O grande ponto de interrogação sobre a América do Sul não deixa de ser um contraponto divertido frente à inversão de Torres-Garcia.
Assim, em cada texto, Melendi agrega ao tema, muitas vezes brutal como a violência da ditadura militar, obras, autores e casos que permitem ao leitor perceber como artistas vem abordando questões essenciais como a memória, o corpo, ou arquivos. Para compreender a arte contemporânea é um livro essencial.