“Tudo no Brasil é um faz de contas”, diz Emanoel Araújo em entrevista na qual comenta sua visão pessimista em relação à mudança do cenário de exclusão social e racismo no país. O artista plástico e gestor cultural comenta também sobre sua exposição, atualmente em cartaz no Masp, e sobre a mostra “É Coisa de Preto”, que organizou no Museu Afro Brasil, que desde sua fundação há 15 anos atua como polo de resistência da cultura negra em São Paulo.
Em que estado se encontra atualmente o debate sobre as marcas da escravidão no Brasil? Qual a importância dessa reflexão?
A universidade, os antropólogos, ficam a vida toda discutindo a questão da escravidão. Serve para que? Vamos ficar falando a vida inteira e nada acontece, porque as pessoas que poderiam mudar o ritmo e o estado das coisas não estão interessados em nada disso. Se a gente ficar só rememorando essa chaga você não resolve a chaga nem anda pra frente. O Brasil é muito perverso, incrivelmente perverso, e a corrupção é só uma dessas perversidades.
E em termos da produção artística, não há uma ação mais contundente, uma movimentação mais ampla?
Tem, mas a situação não muda. É importante que eles façam suas obras, mas o problema é de mercado, de espaço nas galerias. A questão não é isolada. Se há a discriminação, se há desigualdade social, o que a arte faz no meio de tudo isso? Como é que resolve? Tudo no Brasil é um faz de conta. Como você pode entender um Ministério de Igualdade Racial que não iguala a ninguém? Como você faz igualdade racial se você não tem um projeto profundo sobre o Brasil?
Mas ao mesmo tempo é inquestionável o interesse profundo que esse museu desperta… Há quantos anos ele vem atuando e como é pensada a programação.
Esse espaço aqui é quase como uma ação afirmativa, para dizer: “Olha, aqui está a memória, ela está garantida, a memória existe”. As pessoas que lutaram, as pessoas que conseguiram romper com a desigualdade social, as pessoas que saíram diretamente da escravidão são estas. Mas ficou por aí. Ano que vem completamos 15 anos. O museu tem um projeto de continuidade, para não emperrar. Não importa se essas ações são extraordinárias ou não. Não buscamos aqui nenhuma concessão de contemplação. Temos um museu de ação, sempre em favor de um movimento afro brasileiro, de defesa da memória, da história e da arte. Temos também um trabalho em arte-educação, a biblioteca e o acervo permanente.
Você diria que estamos no mesmo pé que estávamos nos anos 1960, 1970, 1980…
Eu acho que estamos pior. Porque havia uma perspectiva de país, de nação, E isso de uma certa forma acabou. De repente. Não deu nem tempo de a gente fazer uma reflexão. Só sei dizer que no meu tempo de formação era mais viável alguém sair do seu lugar de origem e ir para o mundo. Ir para o mundo significava o que? Rio de janeiro, São Paulo, e até o estrangeiro. Eu vejo que hoje é muito difícil para um artista jovem fazer isso. Do meu tempo para cá o que aconteceu com os artistas afrodescendentes?
A história do negro no Brasil é feita de heróis, de grandes figuras emblemáticas, não?
Isso é uma coisa muito brasileira, você não encontra isso em todo lugar do mundo. Podemos citar o exemplo de Mestre Valentim (1745 – 1813), que fica amigo do vice-rei Luís de Vasconcelos (1742 – 1809). Eles vão trabalhar juntos, ter uma relação absolutamente extraordinária porque o Brasil também tem isso, é um país que é ambíguo. A ambiguidade é a nossa mais genuína forma de ser. Tudo pode e tudo não pode. Tudo pode, à medida que você consegue romper esta barreira. E tudo não pode porque já não pode mesmo, porque institucionalmente é para não acontecer. Quando acontece, é um caso à parte. Então nós todos somos umas exceções disso. Dessa ambiguidade.
Você vê a sua trajetória também dentro desse perfil de excepcionalidade?
Eu estava outro dia olhando os jornais de matérias publicadas sobre meu trabalho desde que cheguei em São Paulo. Tanto sobre meu trabalho pessoal como sobre essa questão de gestão que em me meti, que é uma coisa diferente do trabalho artístico. Eu sempre tive o meu trabalho pessoal como teimosia. Comecei fazendo política estudantil, trabalhando para o Partido Comunista. Mas era um tempo mais ameno. Quando eu cheguei em São Paulo, em 1965, tinha uma única favela, em Santo Amaro.
Você parece ter preservado este tempo mais doce, delicado, tranquilo, para seu trabalho artístico, é isso?
A exposição do Masp deriva de um momento em que achei que eu deveria ser mais explicitamente afro-brasileiro. Há alguns anos pensei que precisava deixar de ser tão eurocêntrico. Senti que faltava algo mais contundente nesse sentido E isso eu consegui com essa inspiração de juntar minha geometria, que já tinha laços com a questão africana, com certos registros que levassem alguma coisa religiosa. Foi uma coisa que eu entrei, fiz aquela série toda, e depois sai, também porque ela mete medo nas pessoas. Difícil vender uma obra daquelas. Porque ninguém quer ter este estigma defronte de si. Impossível que alguém compre ou queira. E como os museus no Brasil não compram, a gente tem que pegar e dar.
Como você vê iniciativas como as da exposição “Histórias Afro-atlânticas”, que o Masp inaugura em junho.
Revisitar isso é muito interessante, mas seu potencial de mudança é pouco porque o alcance do museu é pequeno. Não podemos imaginar que o museu possa fazer uma revolução.
Mas ele pode fazer o papel que lhe cabe. E um pouco mais. Como você fez.
Pode fazer e deve fazer. Sobretudo se o museu tem um conteúdo eurocêntrico. Não deixa de ser bem-vindo este olhar mais profundo para a situação social e histórica das nossas vidas. Mas falta muito. Quantos artistas negros têm obras no acervo do Masp? Não quero ser pessimista porque senão eu ia embora, não fazia mais nada. Mas é uma batalha insana a gente conquistar publico, tirar um laivo pejorativo dessa questão.
No caso de “Isso é coisa de Preto”, mostra atualmente em cartaz, qual é seu ponto de partida? Há uma certa ironia mordaz, não?
Todos os personagens da vida política e pública do Brasil que são negros são “coisa de preto”. É uma forma afirmativa do negativo. Fizemos um grande apanhado de todos esses protagonistas do Brasil que a sociedade brasileira insiste em não reconhecer e que a história do Brasil continua não reconhecendo. Escapa o Machado de Assis por esses abortos assim, porque ele também era extraordinário.
A exceção que confirma a regra…
É. Mas quem é que sabe de Cruz e Souza, que é o maior simbolista brasileiro, um dos grandes simbolistas do mundo? Quem sabe dos irmãos Rebouças? Do Paula Brito, que foi o primeiro editor brasileiro… Ninguém sabe. Quer dizer, ainda vira e mexe você tem certas posições que são reveladoras dessa coisa do preconceito.
As estatísticas são realmente aterradoras.
Aterradoras?! É pior do que a Ku Klux Klan. Aqui é pior do que qualquer regime de exceção. É um genocídio. Porque se não for a miséria, é a polícia, se não for a polícia é o crime, é a droga, a milícia, a doença. Isso é desesperador. E você não tem representantes. Esse museu aconteceu por uma vontade pessoal minha. Mas não quer dizer que essa teimosia tenha continuidade.
A gente olha pouco para a África, presente na mostra com fotografias, peças etnográficas e obras contemporâneas?
Sim, a gente olha muito pouco para a África. A gente não sabe da África. Mesmo os negros acham que a África é um país. E ela é fundamental na constituição da condição de mudança da sociedade brasileira. Se não fosse a África seria o que? Imagina tirar o negro dessa história toda. Seria o que? Portugueses e índios? Por isso que eu acho que é muito importante sempre esse panteão para dizer “olha só, isso aqui foi real, foi verdadeiro, foi significativo, foi importante na constituição da sociedade brasileira”.
Você parece afirmar que não se apaga a cultura. As tentativas de apagamento, acabam levando a pensar, equivocadamente, como apenas uma questão étnica…
E não é uma questão étnica. Nem uma questão antropológica. Não é só isso. É muito mais. Não sei o que seria do Brasil sem essas personalidades. É isso que importa, que essa cumplicidade exista.