Em seu “Manifesto Ainda que Tardio”, publicado em 1976, o pintor, escultor e gravurista baiano Rubem Valentim (1922-1991) deixava bastante claro de onde emergia sua arte: “Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade”. Ele buscava, como dizia no mesmo texto, “uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro”, sem se filiar a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas estrangeiras ou nacionais.
Ainda assim, em sentido contrário às palavras do próprio artista, boa parte da crítica, do mercado e da historiografia da arte definiu Valentim como um artista basicamente construtivo, relegando à segundo plano o universo simbólico de sua obra, ligado ao candomblé, à umbanda e à cultura afro-brasileira. Houve uma “insistência em enquadrá-lo, um tanto à força, no contexto das correntes construtivas canônicas, forjadas no eixo Rio-São Paulo, apartando das reflexões os sentidos religioso, espiritual e social, portanto político, que são parte integrante da conformação de seus trabalhos e de sua vida como artista”, afirma Fernando Oliva, curador da mostra “Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas”, uma grande individual do artista em cartaz no Masp até março de 2019.
Marcus Lontra, curador de “Rubem Valentim: Construção e Fé”, outra exposição do artista baiano em cartaz em São Paulo, na Caixa Cultural, segue na mesma linha. “Assim ele se tornava mais palatável. Quiseram adocicar o Rubem Valentim dizendo que ele era um modernista com temperinho brasileiro. Como se falassem: ‘Vamos jogar um dendê aqui nesse escargot’. Mas acontece que o dendê não era o final, era a base”, diz Lontra. “Quer dizer, o Valentim parte dessa visualidade africana e, com um olhar erudito, sintetiza isso através da cor e da forma.”
De outro lado, quando não foi classificado como construtivo ou concretista, Valentim foi visto como um artista “místico, sobrenatural e mágico”, sendo enquadrado em um universo folclórico também simplificador de sua obra. “É equivocado e muito limitador da potência deste artista reduzi-lo a apenas construtivo ou apenas tributário da cultura do candomblé”, diz Oliva. “Nós queremos apresentar o artista total que ele era, que transitava e fazia a síntese entre formas associadas ao abstracionismo geométrico de linhagem europeia, canônico, e as formas que ele encontrou originalmente nas religiões de matriz africana”, explica.
A proposta de apresentar uma leitura mais complexa da obra de Valentim, destacando seu caráter híbrido e sua força política, é o que move as duas mostras em cartaz em São Paulo. No Masp, 80 pinturas e 12 esculturas perpassam principalmente os períodos em que o artista residiu no Rio de Janeiro (1957-1963), em Londres e Roma (1963-1966) e em Brasília (1967-1981). A exposição privilegia também os três elementos do candomblé com os quais ele mais se relacionou: a flecha de Oxóssi, o machado de Xangô e as hastes de Ossain (ou Ossanha). “Essas formas do candomblé são um ponto de partida, mas o que ele faz é depurar, sintetizar, recriar e transfigurar essas formas em outros elementos. E aí está a potência do seu trabalho. Como todo grande artista, ele cria um universo próprio, algo único e original”, diz Oliva.
A exposição no Masp é parte do ciclo “Histórias Afro-atlânticas”, eixo curatorial do museu em 2018, constituído por mostras individuais de artistas cujas obras são atravessadas por questões raciais e por uma grande exposição coletiva que sintetizou o tema. Com foco na diáspora negra e nos “fluxos e refluxos” entre África, Américas e Europa, ressaltando as violências e resistências que marcaram essas histórias, o museu deu sequência aos ciclos de “Histórias da Loucura e Histórias Feministas” (2015), “Histórias da Infância” (2016) e “Histórias da Sexualidade” (2017). O eixo curatorial em 2019, também focado em narrativas não tradicionais, é intitulado “Histórias Feministas, Histórias das Mulheres”.
Na Caixa Cultural, a mostra com cerca de 60 pinturas e uma escultura também se concentra no universo simbólico e na questão da negritude na obra de Valentim. Com foco no período em que o artista viveu em Brasília e nos anos finais de sua vida, passados entre a capital federal e São Paulo, a exposição apresenta o que Lontra considera “uma obra híbrida, perturbadora, que atua no território da fantasia e da formação da identidade nacional”. “Ele rompeu as designações tradicionais; desprezou anacrônicas fronteiras entre o popular e o erudito, entre o nacional e o internacional, entre razão e emoção”, escreve o curador no texto de apresentação da mostra.
ENGAJAMENTO E ATUALIDADE
Valentim nasceu em Salvador, em 1911, e cresceu em contato íntimo com um universo sincrético. Apesar de ser de família católica e ter feito a primeira comunhão, frequentava com o pai os terreiros de candomblé da cidade. Formado em odontologia, passou a se dedicar à produção artística com mais afinco na segunda metade dos anos 1940, quando se aproximou do pensamento de esquerda e de artistas como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Raymundo de Oliveira. Juntos deram início a um movimento de renovação nas artes plásticas na Bahia. Valentim ainda cursou jornalismo no início dos anos 1950, em busca de uma formação mais humanista, e a partir do meio desta década começou a incorporar em suas pinturas os emblemas e signos do candomblé e da umbanda. Com o uso de cores fortes e formas geométricas, criou um repertório pessoal “com base em uma complexa dinâmica de recortes, subtrações e justaposições”, como explica Oliva.
A geometria e as preocupações formais, no entanto, não se sobrepunham às questões simbólicas, como ressaltou o próprio artista: “Nunca fui concreto. Tomei conhecimento do concretismo através de amizades pessoais com alguns dos seus integrantes. Mas logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos e isto não me interessava. Meu problema sempre foi ‘conteudístico’ (a impregnação mística, a tomada de consciência dos valores culturais de meu povo, o sentir brasileiro)”. Neste sentido, tanto o movimento de enquadrá-lo em correntes construtivas como o de chamar sua obra de mágica e sobrenatural acabaram por tirar de Valentim seu caráter político, retomado agora de modo atento nas duas mostras paulistanas. No Masp, a discussão ganha profundidade também em um grande catálogo que, além de apresentar a exposição, reúne textos históricos, desenhos e anotações de cadernos do artista e ensaios inéditos de Lilia Schwarcz, Helio Menezes, Lisette Lagnado e Marta Mestre, entre outros.
Como explicam os curadores, Valentim foi um artista engajado não só no conteúdo de sua obra visual, mas também nas posições políticas que assumiu em textos e entrevistas ao longo da vida. Em seu manifesto, por exemplo, escrito em plena ditadura militar, Valentim se posiciona como defensor do intercâmbio entre todos os povos e nações, mas contra o colonialismo cultural e a subserviência aos padrões vindos de fora; defende uma poética visual brasileira que beba na iconografia afro-ameríndia-nordestina, mas que fuja de modismos e das “violentações caricatas do folclore e do genuíno”; e afirma, por fim, que “a arte é uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas”.
“Diferentemente do discurso purista do modernismo, Valentim representa a possibilidade real de construção de uma linguagem que reflita especificidades brasileiras”, diz Lontra. E são essas especificidades, para o curador, que devem ser identificadas e destacadas, especialmente no contexto atual. No momento em que o Brasil elege um presidente que ofende quilombolas e despreza os direitos humanos, em que o país vivencia assassinatos como o da vereadora negra e feminista Marielle Franco e do mestre de capoeira Moa do Katendê, retomar a obra de Valentim e seu caráter político ganha nova potência e significado.
“Nós estamos diante de violências constantes, com o Brasil revelando toda sua maldade, o horror de uma classe média reacionária. E tem essa ideia do país cordial, da nação boazinha, que é o discurso do opressor e que não engana mais. Antes de aceitar nossa miscigenação temos que aceitar que a mulher negra foi estuprada”, diz Lontra, ressaltando a importância de identificar os elementos negros como fundamentais na história da arte brasileira e na compreensão de um país mestiço. “E acho que o Rubem assumiu essa questão política de modo muito forte e importante. Ele nunca escondeu a violência”. Sobre o futuro próximo, o curador conclui: “Agora temos que enfrentar a ameaça à democracia. E a arte sempre enfrentou isso: ditadura, perseguição, ausência de apoio. E seu papel vai continuar sendo esse, de mostrar o Brasil de verdade”.
Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas
De 14/11/2018 a 10/03/2019
MASP – Av. Paulista, 1578, São Paulo
Rubem Valentim: Construção e Fé
De 07/10/2018 a 06/12/2018
CAIXA CULTURAL – Praça da Sé, 111