Enquanto a 57a. edição da Bienal de Veneza evita questões atuais, não muito distante de lá, um dos ex-curadores da mostra, o italiano Massimiliano Gioni, apresenta, em Milão, La Terra Inquieta, uma ampla investigação sobre artistas e trabalhos que abordam a problemática dos refugiados, um dos pontos nevrálgicos dos países europeus e dos Estados Unidos há décadas.
A exposição, em cartaz no edifício da Triennale di Milano, reúne 70 participantes, em sua maioria artistas, mas também trabalhos afins, como dos quatro fotógrafos que receberam o prêmio Pulitzer em 2016 por imagens feitas para o The New York Times, caso de Daniel Etter, Tyler Hicks, Sergey Ponomarev e do brasileiro Mauricio Lima.
A presença de fotojornalistas aumenta a temperatura da exposição, já que seus autores retratam cenas atuais, como na imagem de centenas de imigrantes acompanhados pela polícia para o registro em um acampamento na Eslovênia, em 2015, realizada pelo russo Ponomarev. Naquele ano, 764 mil migrantes da Síria, Iraque e Afeganistão atravessaram a chama rota dos Balcãs Ocidentais, um recorde até então, acompanhado de perto por Ponomarev e Lima, em um projeto conjunto.
Por outro lado, Gioni selecionou também fotógrafos hoje vistos como “históricos”, caso dos norte-americanos Augustus Sherman (1865 – 1925), Lewis Wickes Hine (1874 – 1940) e Dorothea Lange (1895 – 1965), todos trabalhando no registro documental. Sherman retratava imigrantes que chegavam aos Estados Unidos, Hine destacou-se por denunciar o trabalho infantil e Lange por abordar migrantes durante a Grande Depressão, nos anos 1930.
Com isso, o curador dá um caráter perspectivo à crise dos refugiados, relembrando que fluxos migratórios são constantes na história humana, como se vê também na série de capas do jornal italiano La Domenica del Corrieri que, em 1901, retratava em ilustração a migração italiana rumo aos EUA, tema constante da edição de domingo do diário.
La Terra Inquieta chega ainda a ganhar um tom dramático quando se vê o acervo reunido pelo Comitato 3 Ottobre, uma associação sem fins lucrativos de Lampedusa, a ilha italiana ao sul da Sicília. Foi lá que, em outubro de 2013, uma embarcação com 520 imigrantes afundou, provocando a morte de 368 pessoas.
Criado para dar suporte legal e humanitário aos imigrantes que buscam entrar na Europa, o Comitato exibe em Milão objetos dos refugiados mortos no naufrágio, assim como os pertencentes a outras 52 vítimas de sufocamento em um barco que saiu do Egito, em 2015. Dispostas em vitrines como peças de arte, contudo, esses objetos – celulares, bolsas, documentos – tornam-se por demais museificados, sendo evidente que outro dispositivo expositivo poderia ser menos fetichizante.
Mas o display não compromete a mostra, que reúne muitas obras de arte que abordam a questão das migrações e fronteiras tanto em trabalhos recentes, como em peças já emblemáticas, caso do Mapa Mundial de Alighiero Boetti (1940 – 1994), realizado por tecelões afegãos a seu pedido, com o seguinte texto bordado na margem: “Paquistão no outono de 1992 este novo mundo instável e ainda mais racionado e pulverizado”.
A obra histórica torna-se mais eloquente com a instalação Mar Morto (2015), de Kader Attia, exibida à sua frente e composta por dezenas de roupas dispostas, como a lembrar os corpos mortos no Mediterrâneo nas últimas décadas.Assim sucedem-se os trabalhos de arte, alguns mais explícitos em relação à temática da mostra, outros mais poéticos, como Static (2009), de Steve McQueen, um curta realizado em torno da Estátua da Liberdade, o local onde milhares de migrantes chegaram aos Estados Unidos, ou então Western Union: Small Boats (2007), uma videoinstalação de Isaac Julien que já há dez anos atrás abordava a Sicília como porto de imigração.
Outro dos trabalhos mais sensíveis da mostra é a instalação de Francis Alys, Don’t cross the Bridge Before You Get to the River (2008), uma colaboração com crianças dos dois lados do estreito de Gibraltar, o canal que separa África e Europa por apenas 13 quilômetros em seu ponto mais curto. Na obra, crianças de Tanger, no Marrocos, e Tarifa, na Espanha, criam barcos de sandália de plástico com o objetivo de criar uma ponte humana entre os dois continentes, uma ação que trata mais de esperança do que realidade.
Enquanto tragédias como as mortes do naufrágio em Lampedusa se sucedem, ao menos obras de arte são capazes de permitir algum tipo de otimismo no meio do caos do começo do século 21.