Em meio a dezenas de imagens religiosas, um cortejo mais que sincrético destaca-se no Museu Afro-Brasil. Trata-se de O Cortejo (2009), instalação do artista Nelson Leirner, na qual bananas sobrevoam réplicas em miniatura de santos católicos e de figuras do candomblé e outras religiões, obra que faz parte do acervo permanente no núcleo Festas: o Sagrado e o Profano.
Essa versão é um desdobramento de O Grande Desfile, exibido pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1983, a convite de Iole de Freitas, então diretora da Funarte. “Os objetos que eu usei eram colecionados como um hobby, o que aconteceu com a criação de muitos de meus trabalhos”, conta o artista.
Há 20 anos, Leirner, 84 anos, vive na capital carioca. Quando criou O Grande Desfile, contudo, residia em São Paulo, onde nasceu. “Eu gostava de ir à 25 de março ou às lojas da Liberdade comprar bugigangas. Sempre fui muito fascinado por esses objetos”, explica em seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio, cercado de livros, obras de arte e algumas quinquilharias.
No MAM carioca, a obra era disposta em boa parte do museu: tinha início na portaria, com as menores peças, e ia estendendo-se até metade da escadaria central. Desde então, a instalação foi crescendo até alcançar três mil peças, há cinco anos, quando foi exposta e doada ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói, passando a se chamar Terra à Vista.
Entre 1983 e 2010, a instalação foi crescendo e tendo nomes distintos. Exposta na galeria Luisa Strina, em 1985, chamou-se O Grande Combate, reunindo de baratas de plástico a réplicas da Vênus de Milo e do David, de Michelangelo. Vista na Pinacoteca, em 1986, chamou-se Grande Enterro. Em 1999, chegou a ser exibida na Bienal de Veneza, quando Leirner representou o Brasil.
Versões menores foram ainda criadas, como a que está em exibição no Museu Afro-Brasil. Em outubro, outra delas será exposta no Octógono da Pinacoteca do Estado, tendo sido recentemente doada por um colecionador ao museu paulista. “Agora não faço mais esse trabalho”, conta, como quem diz que não dá para ficar se repetindo ao infinito.
Ao se apropriar de imagens da religião, da política, da história da arte ou mesmo do imaginário popular, Leirner segue uma operação que teve início nos anos 1960, quando desistiu dos pincéis. “A pintura era um processo muito lento para mim, e quando meu pai morreu, em 1962, eu percebi que tinha que mudar e comecei a me apropriar”, recorda-se.
Essa operação, contudo, não tinha inspiração em Duchamp, como se poderia supor. “Naquela época, a gente não tinha informação, eu só fui conhecer Duchamp nos anos 1970, quando comecei a dar aulas na Faap”, conta. Lá ele formou mais de cinco mil alunos, entre eles parte da Geração 80, como Leonilson e Leda Catunda.
Filho da artista Felícia Leirner (1904-1996), escultora de prestígio internacional com obras no acervo da Tate e do Centro Pompidou, com o empresário Isai Leirner (1903-1962), diretor do MAM-SP e conselheiro da Bienal, Leirner cresceu em um ambiente favorável à produção artística, cercado de figuras como o crítico Mário Pedrosa e o mecenas Ciccillo Matarazzo.
“Acho que meus pais queriam que eu fosse engenheiro ou artista. Primeiro, eles me mandaram para os Estados Unidos e lá entrei em um curso universitário de Engenharia Têxtil, mas acabei jubilado porque repeti três vezes o primeiro ano”, diz.
Com a carreira de engenheiro já encerrada mesmo sem ter começado de fato, a arte se tornou a opção. “Por influência dos meus pais, eu comecei a ganhar exposições e textos em catálogos sem que os galeristas e críticos sequer vissem minha obra.”
Leirner não vê uma ligação direta entre o sarcasmo de sua obra com o circuito da arte e as mediações de seus pais para o desenvolvimento de sua carreira. “Naquela época, toda nossa intensão era política e isso não se restringia aos artistas plásticos, mas a todos os artistas em geral”, diz ele, relembrando seus encontros com Ruth Escobar, Walmor Chagas, Cacilda Becker. “Minha relação com o teatro daria um livro”, afirma.
Após se livrar da engenharia e da pintura, Leirner radicalizou sua produção artística, sem influências do exterior, e sim do ambiente político dos anos 1960. É assim que deve ser vista sua mostra Playgrounds, realizada no MASP, em 1969, primeira exposição realizada nos 74 metros quadrados do vão livre projetado por Lina Bo Bardi. “O Pietro Maria Bardi (diretor do MASP) gostava muito de mim e me convidou para fazer essa mostra no vão”, conta.
A mostra reunia 30 obras interativas, com objetos que o público podia manipular, em uma época que mesmo na cena internacional isso era raro. “Eu sempre trabalhei propondo a interatividade porque o princípio era a dessacralização da arte”, explica. Agora em março, em seu revisionismo às origens, o MASP organiza novamente Playgrounds, agora inspirada na mostra de Leirner, mas com outros artistas.
Transgressão era uma marca já na ação de Leirner quando da criação do Grupo Rex, há exatos 60 anos, com Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, José Resende, Carlos Fajardo e Frederico Nasser. Apesar de o grupo ter durado apenas dois anos, suas ações têm caráter histórico, como a introdução de happenings no País. Um dos mais famosos foi o que encerrou o grupo, no final de 1967, a Exposição-Não-Exposição. Organizada por Leirner, ela previa que os objetos podiam ser levados gratuitamente, o que esvaziou a galeria em poucos minutos, provavelmente a mostra mais curta da história.
Assim, bem-humoradas, as ações e obras de Leirner revelam uma carreira profícua em provocar o público e ampliar os limites da arte. Essas fronteiras se tornaram tão borradas que agora o próprio artista não vê muito sentido na produção contemporânea: “Para mim, arte hoje é como um jogo de xadrez com todas as peças da mesma cor”.
E isso é bom ou ruim, pergunto. “Não tem jogo”, responde enfaticamente.