Seis meses depois dos primeiros alertas sobre o Covid-19, ainda circunscrito à região de Wuhan, na China, e três meses depois do vírus chegar de forma inquestionável ao Brasil – depois de passagens devastadoramente letais pela Europa e Estados Unidos, a situação ainda é de paralisia, angústia e desalento. A crise epidêmica é reforçada pelo colapso econômico e, no caso brasileiro, por uma tensão política sem precedentes. Em meio a tudo isso, como analisar as potencialidades da cultura, os efeitos desse cenário sobre artistas, instituições e consumidores de arte? Como avaliar as respostas dadas até o momento, em busca de paliativos digitais, e sopesar as opiniões que variam desde uma otimista visão de que sairemos melhor dessa situação, até uma ácida sensação de que uma era se encerra, mas não se sabe ainda o que virá depois dela?
O cenário de exceção, que provoca letargia e desespero, medo e esperança de transformação, também parece ter um efeito revelador, tornando as fragilidades mais palpáveis, os descasos mais evidentes e as falhas mais perceptíveis. É como se a excepcionalidade da situação, a suspensão da normalidade que perpetua os modelos repetidos muitas vezes de forma mecânica, tornasse mais evidente nossas enormes carências. Do dia para a noite, todos parecem ter descoberto como são fracas as estratégias de comunicação virtual de museus, galerias e outras instituições culturais e como são ainda débeis as ações de ampliação do público por meios digitais. Salvo raras exceções de iniciativas para dinamizar a divulgação dos acervos, discussão de conteúdo e ampliação do contato virtual com o público, tudo permaneceu igual.
Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte
A reação ao óbvio veio carregada de perversidade típica dos nossos tempos. Ao invés de atrair novas e férteis contribuições neste campo, as instituições cortaram gastos exatamente onde faziam falta, enxugando os setores de educação e comunicação. Segundo pesquisa realizada pela seção brasileira do Comitê para a Educação e Ação Cultural do Conselho Internacional de Museus (CECA-BR/ICOM) e da Rede de Educadores em Museus do Brasil (REM-BR), 24% das 147 instituições consultadas (em 19 estados) demitiram funcionários com medo da dupla crise, econômica e sanitária. Além disso, 74% dos consultados estavam realizando trabalho à distância e relataram graves dificuldades como falta de equipe para realização de projetos virtuais e impossibilidade de acesso aos acervos das instituições (obras, documentos etc.).
Além de claras limitações materiais, a falta de intimidade com conteúdos digitais, a inexistência de bases de dados virtuais, a dificuldade em transpor uma relação entre público e arte, que demanda um contato físico, estão entre as principais dificuldades enfrentadas por aqueles que pretendem estabelecer novas formas de fruição, que permitam ao público iniciar ou dar continuidade a uma relação com o universo da arte. Vivemos de repente, e de maneira intensa, a necessidade de acelerar fortemente os mecanismos virtuais de consumo, circulação e produção de arte. Não se trata de substituir a relação entre obra e espectador, mas sim de desenvolver novas formas e critérios para isso, desafio que se coloca para museus, galerias, arquivos e instituições de arte em todo o mundo.
Ferramentas vêm sendo criadas para isso e há uma série de projetos de formação e disseminação dessas estratégias, como o Abre-te Código, desenvolvido pelo Instituto Goethe em parceria com Coding da Vinci, Conselho Internacional de Museus no Brasil, Creative Commons BR, Wiki Movimento Brasil, Fundação Bienal de São Paulo, Instituto Moreira Salles e Itaú Cultural. O projeto, que teve início no mês de junho e terá três meses de duração, tem por objetivo realizar uma capacitação em rede, disponibilizando ao público uma série de discussões e estudos de caso que tratam de aspectos como legislação, sistemas, processos e tecnologia. O coordenador do projeto no Brasil, Leno Veras, faz questão de ressaltar o enorme potencial desse tipo de ação, que vai muito além de emular a experiência de uma visita ao museu. Segundo ele, o caminho é articular contextos, promover novas experiências e estimular uma maior participação do público. “As instituições precisam entender que a tecnologia não é fim, é meio”, afirma.
É possível, no entanto, imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público. É o caso por exemplo da iniciativa tomada pela 12ª Bienal do Mercosul que, ao invés de adiar sua realização, optou por realizar o evento online. Outras instituições de fôlego, como o Masp e a Bienal de São Paulo, vêm tentando conquistar o público com uma oferta crescente de lives, destaques de acervo e exposições virtuais. É o caso por exemplo da mostra Distância, organizada pela Pinacoteca com curadoria de Ana Maria Maia, que põe em diálogo cinco videoartes do acervo do museu, nas quais se veem pessoas em situação de distanciamento, físico mas também social, de raça ou gênero.
É possível imaginar que a crise atual venha acelerar uma reação por parte das instituições, tornando mais ágeis e criativas as formas de contato com o público
Seguir exemplos internacionais de sucesso, como os bem realizados sites de museus como o Prado ou o British Museum – que reúnem um volume enorme de informações que o visitante pode consultar de maneira ágil e a partir de focos bastante precisos e pessoais – pode parecer um sonho impossível num momento em que falta mão de obra, tempo e dinheiro. Daí a importância das iniciativas em rede, coletivas, autogestionadas que, mesmo tendo alcance menor, tem um efeito randômico e libertador. Uma delas é a iniciativa do portal-revista-museu NaBorda, de realizar uma edição especial dedicada à pandemia.
O projeto reúne trabalhos de dezenas de artistas, de diferentes gerações, que se debruçam sobre esse momento delicado, desafiante e assustador. Alguns trabalhos são comentários mais diretos sobre o momento político e social atual – como a terrível Novos Empreendimentos, de Eduardo Verderame, que transforma os túmulos abertos massivamente em suntuosos lançamentos imobiliários, ou o ABC do Coronavirus, do nigeriano Ayò Akínwáné, que explicita o caráter excludente e racista das nossas sociedades. Outros lidam de forma mais poética com a sensação de suspensão que estamos vivendo, mostrando como são múltiplos e coletivos os caminhos, estratégias e ações para enfrentar esse mundo em interregno. Afinal, como sintetiza Verderame, “não são tempos fáceis e irão deixar marcas fortes na subjetividade de uma geração inteira”.