Helena Almeida (1934-2018), artista portuguesa cuja obra é revisitada em ampla antologia no Instituto Moreira Salles, percorreu ao longo de mais de 50 anos uma investigação ao mesmo tempo diversa e renitente, que tem sua própria imagem como eixo central e a fotografia como principal meio de expressão. Surpreendentemente fiel a um leque restrito de procedimentos, temas e indagações, ela toca de forma cirúrgica em algumas das questões que mais mobilizaram a arte a partir a partir do final da década de 1960, como a autorrepresentação e a discussão acerca da expansão dos limites e possibilidades das várias linguagens artísticas.
Partindo quase sempre de sua própria imagem, de forma fragmentada ou integral, sozinha ou interagindo com elementos provocadores como fios, pinceladas ou uma perna masculina à qual a sua está atada, Helena coloca-se como corpo concreto, presença incontornável que sustenta e ao mesmo tempo provoca um curto-circuito dos códigos da imagem. É evidente a relação entre o trabalho de Helena Almeida e movimentos dominantes nos anos 1960, como o minimalismo e a arte conceitual. O que ela nos oferece, sintetiza a curadora Isabel Carlos, é a “presença reiterada de si mesma”. “A imagem do meu corpo não é a minha imagem, não estou a fazer espetáculo”, dizia a própria Helena.
O ato de posar sempre lhe foi familiar, pois desde menina servia de modelo para o pai, também artista, o escultor Leopoldo de Almeida. Talvez esse tempo de espera, a imobilidade alargada no tempo e no espaço do ateliê, expliquem algumas peculiaridades de sua produção, tão próxima e ao mesmo tempo avessa ao caráter teatral dos happenings e performances que tanto marcaram a cena artística nos anos iniciais de sua carreira. A artista verbalizava claramente que lhe interessava não a ação em si, o confronto entre criador e público, mas o registro, a captação daquele momento preciso que parece condensar a força do gesto, tal qual um still de cinema. Ou uma sucessão de fotogramas, que remetem à lógica dos quadrinhos, criando uma linha temporal, explorada em algumas das séries em exposição, a exemplo de Tela habitada, de 1976.
Seu trabalho é sutil e provocativo, combina uma elegância nostálgica com um desejo permanente de subverter relações e hierarquias, lançando mão muitas vezes de uma ironia fina. A artista anula fronteiras entre os gêneros, questiona os limites tênues entre o plano e o volume, entre o real e o representado. E usa a fotografia não por sua excelência técnica ou exatidão mimética. Não à toa é seu marido, o arquiteto Artur Rosa, que faz a maior parte desses registros. “Eu quero uma fotografia tosca, expressiva, como registro de uma vivência, de uma ação”, explicou ela em entrevista concedida à curadora e relembrada no catálogo da exposição.
Tela rosa para vestir, obra de 1969, que serve de capítulo inaugural da mostra do IMS, é uma espécie de síntese do trabalho que será desenvolvido nas décadas a seguir. Ao vestir, literalmente, um quadro, Helena se aproxima daquilo que vinham fazendo outros artistas interessados em anular a distância entre corpo e obra. Além disso, brinca com essa ideia de superioridade da pintura e se debruça sobre o gesto de pintar e de um de seus principais atributos, a cor, provocativamente presente apenas no título, já que a imagem é em branco e preto. Nas mãos de Helena, a cor assume um aspecto curioso e fundamental, já que pontua de forma magnética suas construções visuais. Ela surge de forma intensa, contracenando com a artista, seja na mancha azul que é devorada, exalada ou guardada no bolso, na nódoa vermelha que tinge seu pé fazendo vibrar a escala de cinzas ao redor, ou ainda no negro intenso com que ela se funde em Negro exterior.
O desenho, o outro elemento constitutivo da construção pictórica, é também explorado com maestria por Helena, que nos apresenta uma série de investigações em que o traço se transforma em nexo real, físico. Seja na forma de um incômodo, como em Sente-me, ou elemento que se quer livre, como em Saída negra, um livro em branco do qual as palavras, refeitas em forma de linha, parecem escapar. Mais uma vez, nota-se um reiterado anseio em buscar a autonomia: do risco, do gesto, do corpo.
Outro aspecto ecoa com intensidade na obra da artista portuguesa: seu ponto de partida, como mulher trabalhando em um país submetido por décadas à ditadura salazarista e apartado do centro da produção contemporânea – que ela vivencia intensamente em uma longa permanência em Paris no início dos anos 1970. O verbo habitar é recorrente em sua trajetória, está presente nos títulos dos trabalhos e é reiterado no nome escolhido para a mostra por Isabel Carlos. A casa/ateliê é o espaço em que sua arte se desenvolve, sempre. Espaço protegido, às vezes claustrofóbico, às vezes ampliado por meio de espelhamentos, aberturas. São poucas, mas muito concretas as referências arquitetônicas incorporadas nas imagens, a ponto de a curadora sugerir que, para ela, “o rodapé é o ponto de encontro entre pintura, arquitetura e fotografia”. Na entrevista já mencionada, Helena dá a pista dessa confluência de elementos, que permite a passagem da experiência individual para o caráter universal que toda obra potente parece perseguir: “O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções”.
Essa relação entre experimentação conceitual, poética e vivencial garante à obra de Helena Almeida uma familiaridade comovente com outras artistas que trilharam a mesma seara no mesmo período. São muitos os ecos entre sua produção e uma série de artistas brasileiras e latino-americanas, que, como ela, dedicaram-se a investigar a relação entre imagem e corpo, fotografia e identidade. Podemos citar, por exemplo, Lygia Pape, Lenora de Barros, Liliana Potter e até mesmo Iole de Freitas, que têm um recorte de sua obra dos anos 1970 – mais cortante e experimental – sendo exibido atualmente no mesmo IMS.
Não fosse europeia, ela estaria perfeitamente integrada a propostas de revisão da arte feminista latino-americana, como a pesquisa Mulheres radicais, mostrada em 2018 na Pinacoteca do Estado. Essa sintonia torna ainda mais surpreendente o fato de que tenha sido necessário esperar tanto tempo (sua única participação de destaque em mostra no país foi na 28ª Bienal de São Paulo) para que uma artista portuguesa de renome em seu país, com uma vasta produção e uma afinidade intensa com um tipo de arte frequentemente desenvolvido no Brasil, tivesse uma primeira exposição individual no país. ✱