Autorretrato, década de 1960. Impressão em papel de imagem computadorizada. 36x36 cm. Coleção da artista, Rio de Janeiro.

O mérito da mostra Brasil nativo, Brasil Alienígena, de Anna Bella Geiger, simultaneamente no MASP e no Sesc Avenida Paulista, é recolocar no debate público a obra de uma das mais importantes artistas brasileiras, explicitando a coerência e a pertinência de seu percurso voltado sempre para a questão identitária.

De fato, é a problemática identitária (em sua acepção mais alargada) o que, a meu ver, caracteriza melhor a obra da artista que, embora tenha sido vista por muitos como fragmentária, a mostra do MASP/Sesc acertadamente a configura (de forma consciente ou não) como um território único, mesmo que conflagrado. Nele, as questões ligadas à identidade se digladiam e se superam para ressurgirem mais tarde em novas batalhas, convulsionando o próprio território criado pela artista (as metáforas bélicas aqui usadas estão de acordo com parte da iconografia de Anna Bella).

Gostei da maneira sóbria com que as obras foram dispostas por salas, deixando claro para o público a permanência dessa questão em todos os encaminhamentos que a artista concedeu ao seu trabalho, mostrando, inclusive, momentos em que ela, de fato, marcou a arte brasileira, afirmando um caminho distante da herança concreta/neoconcreta — sem dúvida um norte, mas não o único — a ser considerado como legítimo. Anna Bella é uma das poucas artistas brasileiras com reconhecimento local e internacional, cuja poética não se constituiu como continuidade daquelas correntes e cujas características tão destacadas, dificultam mesmo aqueles que querem alinhar sua obra à “continuidade” do neoconcretismo durante a década de 1960.

O interesse da obra de Anna Bella é que ela se desenvolve autônoma, dialogando aqui e ali com produções de alguns de seus colegas (sobretudo nos anos 1960), porém, mais a partir de influxos exteriores[1] do que locais. Com origem na abstração lírica (ou “expressiva”), a singularidade de sua obra se dá sobretudo por sua inadequação a grupos e mesmo a demandas de mercado.

 

Acima me utilizei de metáforas ligadas à localização (“um território”, “um norte”) e essa atitude não foi gratuita, pois se adequa ao aspecto peculiar da produção de Anna que marca, desde os anos 1970, um lugar específico de onde ela fala: ela é uma artista branca, descendente europeus, vivendo e trabalhando no Rio de Janeiro, Brasil.

Visitando a mostra, percebe-se a artista trabalhando com a sua localização e seu lugar de ação e, para isso, fazendo uso de uma série de meios, como a fotografia, a gravura, o vídeo, a instalação, entre outros e, como método, em grande parte dos trabalhos, a cartografia.

É desestruturando essa linguagem técnica e científica que Anna representará a si e a sua circunstância como instrumento para a sua própria localização no espaço (e no tempo) na busca contínua do entendimento sobre aquele lugar que pode ser (ou vir a ser) seu local de ação perante a realidade e a realidade da arte.

Mas não é apenas por meio da desestruturação da cartografia que Anna Bella desenvolve a afirmação de seu lugar no mundo, como artista e mulher latino-americana. Ela se vale também de determinados procedimentos para minar outros discursos também já firmados pela tradição, utilizando-os para dar continuidade ao trabalho de demarcar o seu lugar de luta.

Ante a abrangência de todos esses aspectos que a retrospectiva de Geiger nos traz, optei por me deter em alguns poucos trabalhos em que ela desestrutura o conceito tradicional do autorretrato a partir de procedimentos paródicos e/ou alegóricos. O interesse por esse setor de sua obra surgiu, por um lado, pela pertinência dessa sua produção que, a partir sobretudo dos anos 1970, dialoga com trabalhos de outras artistas que discutem a identidade da mulher a partir não mais, ou não mais apenas, de trabalhos voltados para a “expressão” de um sujeito autocentrado, mas de um ser que se forma a partir do embate com o mundo (como exemplo, a norte-americana Cindy Sherman que, naqueles anos apresentava a si mesma desdobrada em estereótipos de mulher vindos do cinema norte-americano). Por outro lado, os autorretratos de Anna Bella, junto daqueles de outros poucos artistas que também naquele período desenvolveram trabalhos do mesmo tipo no Brasil (refiro-me aqui a Carlos Zilio e Gabriel Borba, entre outros), darão início a um tipo de produção local, em que os artistas passarão a usar o próprio corpo não mais como marca de uma individualidade intransponível, mas como elemento para a discussão sobre a subjetividade contemporânea, marcada pelo embate com a sociedade, a tradição, a indústria cultural etc.

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Foi uma ideia feliz a dos curadores da mostra apresentarem, junto a trabalhos mais conhecidos de Anna Bella, obras menos conhecidas, porém não menos importantes, dada sua significação no quadro da arte brasileira. Me detenho aqui em uma parede da exposição onde se encontram três autorretratos de Anna Bella, um de 1951 (Col. G.Chatteaubriand/MAM-Rio), os outros, respectivamente dos anos 1960 e  2003 (ambos da coleção da artista).

Na primeira, um grafite e carvão sobre papel, é notório o desejo da artista em adequar sua imagem à tradição do autorretrato: o tronco e o rosto são descritos de maneira sintética, com ênfase nos olhos, com as pupilas voltadas para a direita, meio inquietas e desconfortáveis. Essa adaptação do próprio corpo às estruturas da retratística tradicional, a ênfase à “expressividade” do olhar (olhos, as “janelas da alma”), atestam que, ainda em seu processo de formação, Anna Bella encarnava a visão que a sociedade ocidental construiu para a autoimagem do artista. Na obra, não se percebe apenas uma adequação, mas uma crença nesse constructo (apesar do desconforto aparente da modelo).

Anna Bella dá sinais de deslocar-se dessa tradição, quando, cerca de uma década depois, propõe um autorretrato que, na verdade, já se assume como um readymade modificado: originariamente uma fotografia analógica de seu rosto, agora processada via computador. Nada nessa peça exala a aura do artista: nada da expressividade do gesto autoral, do olhar denso. Esse autorretrato é manipulação e deslocamento puros.

Já em Monalisa, um backlight, a imagem da artista é apresentada como paródia e como alegoria. Simula, em termos jocosos, a Mona Lisa de Leonardo (e a paródia dessa obra, realizada por Marcel Duchamp no início do século passado) e, ao mesmo tempo, funciona como um complexo comentário sobre o sistema de arte no Brasil. Ao emparedar a própria imagem entre um cartaz (onde se lê, “Anna Bella Geiger” e mais abaixo, “Photo Rubber”) e, no último plano, uma foto da favela de Santo Amaro, no Rio de Janeiro[2], Anna Bella ironiza a si mesma, tomando-se como uma “photo rubber stamp” do circuito de arte, sobrepondo-se à realidade social de sua cidade natal.

Com o conjunto formado por essas três obras, o visitante é levado a entender o percurso de Anna Bella, tanto dentro da tradição dos autorretratos quanto da própria história da arte recente: o respeito inicial à tradição se abre para as novas tecnologias e a instrumentalização irônica da própria imagem para a produção de obras que desmentem aquele respeito inicial.

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Brasil nativo/Brasil alienígena – obra de 1976/77 que empresta o título à exposição – é formado por nove pares de cartões-postais. Cada par, por sua vez, conta com um cartão-postal representando indígenas brasileiros em diversas ações, e por um segundo cartão em que a artista reproduz a cena presente no primeiro, usando a sua própria imagem e, em alguns casos, também figuras do seu convívio.

Não é à toa que essa obra marcou um ponto de desvio na arte brasileira. Em primeiro lugar, porque ela se configura como uma ação de apropriação, no caso, de cartões-postais industrializados representando indígenas em situações estereotipadas. Raras vezes, no país, um/a artista teria se apropriado de objetos reais como elemento constitutivo do trabalho[3].

Por sua vez, os cartões produzidos pela artista para acompanharem aqueles apropriados representavam Anna Bella tentando canhestramente se adequar aos estereótipos dos indígenas, construídos há décadas, e reforçados pela indústria cultural local, alinhada à ditadura civil-militar que então governava o país. Ou seja, Anna Bella não se apresentava mais como um sujeito que cria a realidade, no sentido romântico do artista como demiurgo, mas como um indivíduo que edita o próprio real existente, conferindo-lhe outros significados. E, para tanto, não se vexa em usar a própria imagem para alcançar seus propósitos que estão longe de buscar a expressão de seu “eu profundo”.

Daí, então, a ressonância de sentidos possíveis de Brasil nativo/Brasil alienígena: o que significa ser brasileira ou brasileiro? Como se adequar às simulações de brasilidade, tendo como parâmetros as figuras idealizadas dos indígenas que, naquele tempo (como hoje) sofrem as agruras do extermínio? Por outro lado, o conceito de autorretrato que, se por ventura, ainda pudesse existir naqueles cartões-postais produzidos por Anna Bella apresenta-se totalmente corrompido ou colapsado, dado que ela, criticamente, simulava se adequar a um conjunto iconográfico (e comportamental) que não fazia parte de sua experiência imediata.

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A dimensão crítica de Brasil nativo/Brasil alienígena, ao ironizar os estereótipos de brasilidade muito divulgados naquele período pesado da história do país, funcionava como uma pá de cal jogada sobre eles. A partir de Brasil nativo/Brasil alienígena, pensar a questão identitária no Brasil ganhava outra complexidade, ao mesmo tempo em que o próprio conceito de autorretrato dava sinais de que deveria ser repensado e refeito.

Ao mesmo tempo, é interessante sublinhar como Brasil nativo/Brasil alienígena pode ser entendida como a busca de Anna Bella por uma localização física e simbólica, a partir da constatação do que a artista não era, em relação à sociedade em que estava inserida.

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Ainda naquela década, mas pouco antes da obra tratada acima, entre vídeos, gravuras e fotografias expostas no MASP, encontram-se duas séries de fotomontagens em xerox, ambas de 1975. Em Diário de um artista brasileiro[4], Anna Bella atesta sua inadaptabilidade como mulher e artista dentro de um determinado segmento, o circuito de arte dominado por homens brancos. Ela insere retratos seus em fotos de artistas plásticos célebres, apropriadas de revistas.

Diário de um artista brasileiro, 1975.

Registre-se como a inadequação simbólica de uma artista latino-americana àquele universo, explicita-se na própria inadequação proposital de seus retratos inseridos nas fotos protagonizadas por Matisse e outros, numa conjugação perfeita (diga-se) entre a formalização dos trabalhos da série e a intenção que a motivou[5].

Na série Arte e decoração, retratos recortados de Anna Bella, sempre vestida de preto (apenas suas sandálias eram brancas, em contrastes com as meias, também pretas), foram colados em fotos retratando ambientes glamurosos, em que as obras de arte eram apresentadas como símbolos de prestígio, como mercadorias de luxo. Esta série enfatiza também a inadequação da artista àquele tipo de lugar proposto para a arte pelos meios de comunicação de massa, lugar que ela demonstrava também não querer pertencer.

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O visitante que se dispuser a percorrer a exposição com certeza encontrará vários outros trabalhos de Anna Bella, em que ela demonstra ser a desestruturação do conceito tradicional de autorretrato, uma de suas estratégias principais para a constituição de sua obra que, como mencionado no início desses comentários, configura-se como um território de conflagração de temas identitários.

A exposição traz outros segmentos desse mesmo território, também fundamentais para a compreensão geral da obra dessa artista? É claro que traz. Para satisfazer a curiosidade, é preciso visitá-la, entrando em contato direto com a obra dessa que é uma das mais importantes artistas brasileiras.


[1] – A pop art, o happening, a performance, a arte conceitual etc.

[2] – Sobre o assunto, ler “Anna Bella Geiger: vísceras, mapas e retratos”, de Tomás Toledo. In Museu de Arte de São Paulo e Serviço Social do Comércio. Anna Bella Geiger: Brasil nativo/Brasil alienígena. São Paulo: MASP, Edições Sesc, 2019, pág. 26.

[3] – Na mesma época, outros artistas no Brasil também realizavam operações ligadas à apropriação, ao deslocamento de imagens e à construção de cenas. Além de Anna Bella e dos já citados Carlos Zilio e Gabriel Borba, seria interessante ter em mente também algumas das produções de Aloísio Magalhães, Regina Silveira e Nelson Leirner.

[4] – Interessante Anna Bella nomear a série reforçando o gênero masculino da palavra “artista”. Uma alusão irônica ao fato de que ser artista naquela época significava ser homem, ou um ato falho? Uma questão a ser analisada em outra oportunidade.

[5] – As fotocolagens que deram origens às fotomontagens foram produzidas em uma máquina reprogrática cujos resultados eram muito discutíveis do ponto de vista técnico, fazendo com que as imagens resultantes não primassem pela boa visualização. Junte-se a este fato, aquele da proposital inadequação dos retratos da artista inseridos nas fotografias dos artistas célebres.

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